PARTE 1 - Um longo prelúdio -
João "o escriba" Brasil
II. Primeiras mudanças
Há algum tempo haviam deixado para trás os últimos sinais de terra firme. À frente somente o desconhecido. Passaram pelas ilhas do Reino de Jade – recentemente destruída em acontecimentos que não lhes foram muito bem compreendidos – sem qualquer percalço. Notaram a incômoda vermelhidão dos céus rasgados por incontáveis relâmpagos na direção de Tamu-ra. Mas até aquele dia ainda havia um certo reconhecimento do espaço no qual estavam navegando. Ainda reconheciam as correntes marítimas e sabiam como encaixar as velas nos ventos da região para irem para qualquer lugar.
A jornada que empreendiam havia sido escolha de Slocun. Isto era o que se poderia chamar de um capricho. Slocun era um capitão vitorioso. Mesmo sendo muito jovem fazia parte de um segmento cada vez maior de grandes navegadores jovens. Em todo o oceano à leste de Arton somente dois capitães, além dele, nestas características, despontavam. Sabiam que existia também um grande território oceânico do outro lado de Tyrondir e que era fervilhante, de escunas à navios de grande porte, e com grandes capitães. Mas o desconhecido para ele estava no norte. A grande barreira a ser transposta estava naquela direção.
Desde que assumiu o Gaivota do velho capitão Kyruin e recebeu-o como seu e transformou-se de um imediato jovem em um jovem capitão, nunca conheceu a derrota. Foram anos, embora poucos, de vitórias e riquezas. Não era ganancioso pelos butins - “A satisfação está nas glórias da vitória” – é o que sempre dizia completando – “e na cara desconcertada dos derrotados”. Mas com o passar do tempo os grandes desafios foram escasseando e, cada vez mais, sonhava com uma jornada ao norte. Nem que fosse para voltar e dizer que não existe nada de interessante por lá.
Uma vida vitoriosa sempre trazia algumas vantagens. E entre elas está a cega dedicação dos homens que vislumbram em seu capitão todas as qualidade que os levaram à tantas vitórias - a imagem do líder propriamente dita. E isto era algo inquestionável em Joshua Slocun.
Por todas essas razões, além de que normalmente os homens do mar têm um apetite que beira o insaciável pelo desconhecido – tanto faz se pelas riquezas que estão nele ou por suas maravilhas – fez com que o Gaivota rumasse para o norte.
Mas o ambiente de normalidade estava começando a mudar bem lentamente. Algumas rajadas de vento trocavam de sentido sem aviso e outras surgiam do nada igualmente sem aviso. Correntes marinhas, que antes dirigiam-se para o norte, lentamente rumavam para nordeste. O timoneiro Kankar por mais de uma vez reportou ao mestre que a condução estava exigindo gradativamente mais atenção dele do que de costume.
E isso era só o começo.
- Homem ao mar! Homem ao mar! – gritava o pequeno Listian do alto da gávea.
Mal passara do almoço e muitos homens estavam sonolentos ou cochilando após uma farta refeição. Acharam, assim, que os sonhos haviam invadido sua realidade. Slocun e mestre Tugar saíram rapidamente da cabine, onde conversavam rotineiramente após a refeição entre as largas baforadas de seus cachimbos. Correram em direção ao mastro da gávea. Olhavam de um lado ao outro tentando enxergar o alvo do alerta do vigia. Muitos outros faziam o mesmo e um pequeno grupo já se amontoava na proa.
- Fale Listian! – gritou Tugar.
- Um corpo imóvel na água junto de destroços – respondeu o vigia que permanecia com uma luneta no olho – pouco mais de meia milha.
- Por Oceano, o que estaria fazendo aqui neste fim-de-mundo – sussurrou Tugar entreolhando o capitão.
- Um pouco de emoção. Nem acredito! E tu que disseste que não veríamos viva alma nestas paragens, hein? – dizia enquanto cutucava o mestre com o cotovelo e pegava a pequena luneta no bolso – E não é que é mesmo um homem – resmungou.
- Ordens, senhor? – disse Tugar já virando de costas e encaminhando-se para a ponte.
- Vamos ver o que nos espera ali. Mestre, diminua a velocidade e vamos traze-lo à bordo.
- Vocês ouviram, bando de tartarugas anêmicas. Recolham as velas! Timoneiro, coloque o navio ao largo do infeliz, deixando-o à estibordo! Preparem para descer o bote e coloquem alguns ganchos lá! Quero três homens neste bote! Chamem Syan lá embaixo e peça para trazer sua bolsa! Rápido seus molóides.
- Onde é o incêndio para me acordarem a esta hora da tarde!? – gritava Syan enquanto esfregava os olhos com as mãos e trazia na cabeça o cabelo completamente despenteado. Ele surgiu correndo o quanto seus trajes permitiam. Era uma figura singular naquele ambiente. Vestia um pesado manto negro com sutis detalhes brancos à toda volta. Era jovem como grande parte da tripulação, mas nos olhos trazia a serenidade do conhecimento advindo de muito estudo. Trazia consigo uma bolsa grande, volumosa e surrada de couro no ombro.
- Acho que temos algo para você, dorminhoco – disse Slocun – Um corpo no mar. Seus préstimos serão necessários aqui mais do que no mundo dos sonhos.
Os homens no bote iam equilibrando-se da forma que dava enquanto eram lançados vagarosamente ao mar. Todos os homens do navio já estavam apinhando-se nas amuradas para conseguir uma boa visão do resgate conforme o navio ia aproximando-se dos destroços.
Ao chegarem perto dos vestígios, e do corpo, notaram que aqueles não eram os únicos destroços. Agora ficava mais claro que eles espalhavam-se por uma grande porção de água por toda à volta.
- Foi um naufrágio senhor? – gritou Listian para o capitão – ou foi afundado?
E isto não era evidente ainda.
Para todo o lado em que se olhasse havia pedaços de tábuas e de mastros, cordas e barris, restos de velas. Mas um único corpo. E era nele que todas as atenções estavam centralizadas.
O resgate foi rápido e sem problemas. Além do corpo os marinheiros gastaram algum tempo recolhendo tudo o que fosse útil para ser utilizado no Gaivota.
Syan, ao receber o corpo à bordo, o conduziu imediatamente à sua sala de estudos – que também era sua cabine - juntamente com Slocun, para uma análise mais pormenorizada. Sua cabine, uma saleta para dizer a verdade, embora fosse um privilégio dentro de um navio, era reduzida mas muito bem organizada. A mesa junto à escotilha recebia toda a claridade necessária para qualquer afazer. Todas as outras paredes estavam cobertas por um contínuo armário abarrotado de livros, vidros e frascos – cheios e vazios - ossos pendurados, espécimes empalhados e pergaminhos. O refúgio, que para Slocun materializava-se na gávea, para Syan era este pequeno aposento.
O corpo mutilado, ainda molhado, foi colocado na mesa. Não era uma visão nada agradável para ninguém.
- O que seu conhecimento pode nos dizer Syan – comentou Joshua olhando o pobre infeliz que jazia no móvel.
Os olhos de Syan corriam de um lado para o outro do corpo, à vezes se detendo em um ou outro ponto. Realizou este vai-e-vem por alguns instantes. Não dizia nada. Slocun sabia que este era o jeito dele e que embora estivesse quase inerte, sua mente estava trabalhando sem parar.
- Parece ser um humano normal. Morreu em combate. Vê aqui a marca de uma espada que trespassou-o? Deve ter sido um bom combate. Mas há uma coisa curiosa aqui. Senhor, me alcance aquela lupa de cima da mesa, por favor – apontando para trás de si enquanto aproximava seu rosto ainda mais do cadáver.
Pegando a lupa Syan investigou o cotoco do braço esquerdo com uma curiosidade que Slocun não entendia.
- Agora está mais claro, embora não entenda como. Olhe aqui Senhor! – Syan aponta para o membro decepado lhe passando a lupa – o que o senhor vê?
- Parece só faltar um pedaço. O que eu deveria estar vendo meu amigo?
- O ferimento.
- Não foi um corte que de tão forte decepou-lhe o braço.
- Não? Não é um corte?
- É uma mordida. E não é de nada que venha do mar, pode ter certeza disso.
- Não poderia ser um tubarão? – Slocun franziu a testa olhando melhor o ferimento.
- Não acredito que possa ser. Os contornos da mordida de um tubarão são típicos. Tem de ser algum outro animal. Algum animal carnívoro, com certeza.
- Mas no meio do nada desta imensidão azul? Como?
Estavam desconcertados e curiosos. Syan continuou investigando o corpo com cuidado enquanto Slocun olhava suas roupas até dar mais atenção ao que estava na mão que ainda existia. O defunto segurava algo que lhe tinha passado quase desapercebido. Abrindo-a com algum esforço puxou um pedaço grande de tecido dobrado.
- Olhe isso! – Slocun foi abrindo um tecido negro. Com os braços esticados abriu o máximo que pode descortinando uma bandeira de um tecido muito fino. Slocun sabia que uma bandeira negra somente significava uma coisa – piratas, como eles. Mas o que o perturbou foi o que estava pintado no seu centro. Ali havia, centralizada, uma enorme representação de uma pata de algum animal – um cão talvez.
- Que significa isto, senhor?
- Gostaria de saber também. Posso não ser muito velho, mas meu conhecimento sobre as bandeiras da maioria dos piratas de toda a região oriental é bem considerável. Mas mesmo assim não reconheço este símbolo.
Syan ia escutando enquanto permanecia em sua pesquisa sobre o corpo. Ora tocava aqui, ora espetava ali. Abriu a camisa esfarrapada do morto e sua reação foi imediata. - Oh, oh!
Mas a intervenção não tirou Slocun de seus devaneios na tentativa de entender o objeto que tinha nas mãos. E a surpresa de Syan também não o deixou perceber que o capitão não havia escutado nada, e continuou a pesquisar.
- Senhor, é melhor olhar isso! – sussurrou Syan.
Mas o capitão continuava pensativo e sem perceber nada a sua volta.
- Senhor! – falou mais alto para tirar Slocun do transe – olhe isto. O que lhe parece?
O capitão caiu em si virando-se para o corpo como que ajustando a visão. Mas conforme sua visão acostumava-se à imagem, ele foi tomado por um susto.
- Pelo todo sagrado Oceano, o que é isso?
Nenhum comentário:
Postar um comentário