sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
Diário de um Escudeiro 35
Estou me sentindo em casa, embora tenha sido um dia um tanto cansativo.
Tollon é muito semelhante à Namalkah. Não sei se por muitos seguirem a deusa Allihanna ou pelo povo ligado às coisas da terra. O certo é que estar aqui é reavivar aquilo que tanto prezo em mim. Muitos dos que têm convivido comigo nesses meses de treinamento, em Norm, aparentam um espírito inquieto. Um algo dentro deles que os deixam sempre à procura de alguma coisa que os mantenham em atividade. Eu sou o contrário, ou melhor, diferente. Estou sempre procurando algo que mantenha minha tranqüilidade. Já me disseram que esse espírito não combina com o de um cavaleiro. Antigamente eu respondia meio ofendido, mas hoje eu apenas retribuo a pergunta com outra – ‘mas então em quê que a outra forma ajuda alguém a ser um cavaleiro?’
Desde que entrei na Academia dos Cavaleiros da Luz que me questiono se estaria no lugar certo. Se eu teria o perfil de um cavaleiro, se eu honraria a posição que estava galgando. Sir Tussan, certo dia, me pediu para dar uma olhada à minha volta e perguntou-me: “Ves esses cavaleiros, cadetes e escudeiros? Quem deles deveriam ou mereceriam estar aqui? Muitos são estranhos aos desígnios de Khalmyr e duvido que um dia cheguem à entende-los. Não sei se tu entenderás um dia... Mas fazer esses questionamentos só me provam que estás no caminho certo.”
Essas palavras de Sir Tussan volta e meia retornam à minha mente quando começo a me questionar. Vejo o valor delas, e sua inquestionável importância em momentos como o desta comitiva. É impressionante como em um grupo tão pequeno quanto esse, toda a realidade dessas palavras esteja presente. Quantos de nós somos dignos, ou melhor, quantos de nós nos fazemos dignos da posição privilegiada que assumimos?
Outra coisa que percebi é que naturalmente, inconscientemente, acabamos por nos aproximar daqueles que pensam ou se parecem conosco. Não à toa que Sir Tussan, Sir Telleon e Sir Argnal são tão amigos, embora não se aventurem juntos. Isso aconteceu comigo, com Gustav e Arlan, meus colegas cadetes. Mesmo tão diferentes, somos muito iguais em nossa visão da responsabilidade assumida.
Não sei se é pretensão excessiva, ou mesmo arrogância, mas não me sentiria ‘eu’ se não me questionasse disso.
Mas de qualquer forma esse primeiro dia em Vallahím foi uma benção, um retorno às coisas boas e simples da vida. Sir Tussan nos deixou livres por todo o dia para que descansássemos para os afazeres do torneio em breve. Cedo eu já estava tirando meus dois amigos da cama, sob olhares de ódio mortal deles. Eu estava ansioso por conhecer este lugar.
Comunidades como esta têm sua vida regrada pela a natureza onde tudo começa a funcionar cedo, assim como os filhos de Allihanna. Então, mal os primeiros raios de sol despontaram no horizonte e a cidade já estava fervilhando.
Saímos com nossas túnicas. Não tínhamos a menor pretensão de ostentarmos que éramos cavaleiros. Muitos dos outros empolados cadetes passaram o dia metidos em suas pesadas e quentes armaduras apenas pelo prazer de mostrar sua condição. Era hilário.
Na rua todos eram muito amistosos. A hospitalidade típica da região extrapolava o imaginável. Enquanto procurávamos uma taverna para uma primeira refeição fomos perguntando aqui e ali até que um senhor de muitas primaveras vividas nos convidou para comermos em sua casa.
Aceitamos de pronto e acho que mesmo que não aceitássemos ele nos teria arrastado. Seu nome era Rodreck. Ele tinha uma pequena oficina de móveis ao lado de sua casa. Embora não fosse de posses sua mesa era farta. Aos poucos aprendi que o momento da refeição era um momento de confraternização e troca de experiências. Ao redor da mesa experiências eram trocadas, costumes eram repassados. Quando viajantes passavam pela cidade este era o momento de saberem das notícias de além da fronteira, das aventuras, das lendas. Isso era muito semelhante à Namalkah.
Passamos momentos agradáveis ali. Cada palavra que proferíamos era escutada com enorme atenção. As crianças nos despejavam enxurradas de perguntas. Foi ótimo, não fosse pelo final da visita. Quando estávamos para nos levantar um momento de silêncio se fez e uma perguntava pairava no ar para ser feita à nós. Percebíamos isso, mas não tínhamos idéia do que seria.
“- O que podem nos contar sobre a praga que se abateu sobre o reino distante de Jade?” – nos disse o chefe da casa em tom cerimonial.
Não tínhamos muita certeza do que responder. Nem nós sabíamos ao certo do que se tratava. Havíamos escutados nessas últimas semanas que algum mal muito grande havia acometido uma ilha inteira de um reino longínquo que eu nunca havia escutado e que alguma coisa teria acontecido em Valkaria. Mas nunca demos real atenção para o caso. Não entendia por que isso preocupava tanto essas pessoas. Isto não era comentado nem pelos cavaleiros, não sei se por descuido com o assunto ou se por puro desconhecimento.
Quando saímos da casa já era quase hora de uma nova refeição, embora estivéssemos fastiados. Fomos à zona central da cidade com esperança de visitar a feira de mercadorias que sempre estão presentes em grandes eventos como este, mas as barracas estavam sendo preparadas para o próximo dia, véspera do festival. Muitas carroças e carroções iam e vinham entre muitos comerciantes atarefados.
Sem ter o que fazermos ali passamos o resto do dia à toa jogando conversa ao vento. Já tinha percebido que estávamos sempre juntos. Mas era como se sempre tivéssemos novos assuntos para debater. Quase no final da tarde nos encontramos à frente de um pequeno templo de Khalmyr. Ele era realmente pequeno para o padrão dos templos. Ele poderia passar desapercebido não fosse por uma pequena estátua do escudo e da espada, símbolos do deus da justiça.
À porta um rapaz franzino estava apoiado numa pilastra com um par de muletas ao seu lado. Ele vestia uma túnica branca muito simples e um par de sandálias de couro. Seu semblante era jovial, embora as marcas do sofrimento fossem igualmente evidentes. Ele nos olhou com um ar interessado quando nos aproximamos.
“- Este é um templo de Khalmyr, certo? Podemos ver o sacerdote?” – disse de forma calma.
“- Ele é muito atarefado. O que querem com ele?” – respondeu o rapaz enquanto ia pegando suas muletas.
“- Desejamos apenas uma benção de nosso deus e trocarmos algumas palavras com ele.”
“- Entrem então e aguardem que eu o chamarei!” – então ele virou de costas e saiu contornando a pequena casa.
Nós três entramos. Não era nada mais do que um pequeno salão que não comportaria mais do que vinte pessoas. Tinha alguns bancos de madeira rústica nos cantos e um altar de pedra bem à frente da porta de entrada com o entalhe da espada e do escudo. Flâmulas representando Khalmyr estavam dispostas em todos os espaços. Num canto um pequeno tablado de madeira servia para que os devotos se ajoelhassem para suas orações. Nele encontramos Sir Tussan meditando tão profundamente que não nos escutou entrando.
Fora nós e Tussan, não havia mais ninguém. Até que de uma porta dava para os fundos do salão surgiu novamente o rapaz, agora ostentando um enorme medalhão semelhante ao do entalhe do altar. Não estávamos entendendo. No momento não percebemos que ele era o sacerdote de Khalmyr. Estávamos acostumados à ver vigorosos cavaleiros e guerreiras como sacerdotes que nem pensamos que ele pudesse ser um.
Ele se aproximou e nós três começamos a pedir desculpas pelo falta de educação não o tendo reconhecido.
“- Não se preocupem cadetes. Vocês não foram os primeiros e nem serão os últimos. É comum que procuremos modelos que representem aquilo que conhecemos ou acreditamos. Em cinco anos naquela porta, desde que cheguei nesta cidade abençoada, e nunca fui reconhecido por qualquer visitante estrangeiro como sendo o sacerdote de Khalmyr desta cidade.
O rapaz, embora muito novo, pouco mais velho do que nós, não mais do que uns seis ou sete anos, nos indicou os bancos de pedra e após sentar-se foi rodeado por nós.
“- Muitos acham que as palavras de khalmyr clamando por justiça represente que tenhamos de aplicá-la apenas em nossas lutas e contendas. Ledo engano. A justiça ‘dele’ deve se aplicada à tudo antes de chegarmos ao combate. Se todo o resto falhar, daí devemos desembainhar a espada. Não quero dizer que Khalmyr seja um deus pacífico. Isso é papel da deusa Marah. Mas ele não usa como primeiro recurso justamente aquilo que ele combate”
“- Mas como fazer isso então?” – perguntou Arlan.
“- É simples. Seja Khalmyr em todas as suas atitudes, em todos os seus momentos. Seja a mão de Khalmyr em todos os seus atos em todos os dias. Use a sua justiça em cada ato e para todos, antes mesmo de aplicá-la à si.”
“- Mas se é assim, então ninguém é um real seguidor de Khalmyr!” – disse eu num rompante de raiva diante de tal descoberta. Como ser a própria essência do deus da justiça – “Como seremos assim perfeitos como ele?”
O jovem sacerdote riu calmamente, mais por pura diversão do que em uma forma de arrogância – “Ora, meu caro cadete, quem disse em ser perfeito. Khalmyr não deseja os perfeitos. Ele aplica sua justiça já neste reconhecimento de seus filhos e seguidores. Ele não procura a perfeição em vocês e nem você o devem fazer. Vocês devem, antes, usar a perfeição, a perfeição de serdes justos, com meta, como alvo. Isso sim é serem justos consigo mesmos. A procura da perfeição é o reconhecimento constante de que precisam estar sempre se aperfeiçoando e, com isso, nunca caírem no erro de subjugarem os desígnios do deus.”
As palavras do jovem sacerdote vieram de encontro com aquilo que estivera pensando nos últimos dias. Isso não poderia ser por acaso. Algo além da minha compreensão agiu ali. Ele percebeu meu olhar e minhas dúvidas internas e complemento – “ele está atento, em Ondine, seu reino, para todos os seus fiéis e seguidores e não deixa ninguém sem amparo e auxílio”.
Nisto ele se levanta e chegando próximo de nós eleva uma de suas mãos enquanto com a outra retira uma espada debaixo de sua túnica. Ele a segura pela empunhadura, com a ponta virada para baixo, como se fosse uma cruz e realiza uma oração em silêncio. Uma aura azulada cerca o sacerdote e logo depois todos nós sentimos um relaxamento que contagiou cada fibra do meu corpo.
“- Agora podem ir filhos do deus da justiça” – disse p sacerdote em tom calmo – “sigam seu destino amparados pela espada e protegidos pelo escudo de Khalmyr.”
Nos levantamos em silêncio e saimos do pequeno salão. Lá fora Sir Tussan, que nem percebemos que havia deixado o recinto, nos esperava preparando o fumo em seu cachimbo. Ele nos olhos com calma. Acendeu seu fumo e se aproximou de nós, que mantínhamos o silêncio.
“- Eu lutaria ao lado deste sacerdote em qualquer lugar contra qualquer um. Para mim, ele representa tudo o que um seguidor de Khalmyr pode ser” – disse meu senhor de armas.
O resto da tarde correu rápida, mas aquele encontro foi impactante. Nosso dia foi diferente dali em diante. Pareceu que aquelas palavras tocaram fundo em nossas almas, pelo menos na minha tocou profundamente. Na janta conversamos sobre tudo, menos sobre aquele encontro.
Vou dormir cedo. Comecei a escrever as memórias de forma que pudesse me recolher aos meus aposentos mais cedo que o normal, quem sabe para poder digerir melhor as palavras de sabedoria do sacerdote.
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