sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Conto: A bárbara e a caça - uma fábula de Natal em Arton

A bárbara e a caça
- Uma fábula de Natal em Arton -

João Eugênio C. Brasil


A pequena Huryn afundava as botas de couro de cervo na neve enquanto seguia o rastro de sua presa. Já faziam algumas horas desde de que ela localizara as sutis marcas na neve. Não fosse o tempo firme do último dia e a neve teria coberto tudo.

De qualquer forma a nevasca da última semana havia deixado quase meio metro de neve em toda a extensão das Montanhas Uivantes, o reino gelado do leste, e isso era um complicador à mais para ela se deslocar, embora essa fosse uma de suas especialidades.

Um dia antes o chefe do clã, que também era seu pai, pedira para que ela assumisse a missão de conseguir uma caça digna, uma ave muito peculiar, estranha e perigosa daquela região, mas igualmente saborosa. Mas não só por suas peculiaridades é que tal presa fora determinada. Ela era um símbolo também. Seria a oferenda da tribo ao seu deus, um deus menor, é verdade, mas a divindade que eles adoravam. Todo ano, naquela mesma época, quando as nevascas ficavam quase que constantes, muitas tribos de bárbaros da região lembravam de um dos seus. Ele não tinha nome, ou pelo menos não lembravam qual era. Mas sua história era passada geração após geração nas beiradas das fogueiras, nas conversas entre aprendizes e mestres, nas noites frias dentro das casas.


Esse irmão sem nome havia se sacrificado em uma das grandes guerras entre os clãs, quando eles ainda procuravam por diferenças e não por semelhanças, para salvar todos, sem excessão. Há incontáveis luas, antes ainda dos avôs de seus avôs, esse homem conseguiu, com sua morte, unir à todos. Mas não só isso. Antes ainda de sua morte ele alimentou aliados e inimigos, protegeu indefesos e ensinou os mais fracos. Com sua espada e seu arco ele mostrou o quer era ser bárbaro e o que era ser digno. E sua história era passada geração após geração.

Mas nesta época, em especial, todos contavam a lenda de sua aventura para alimentar As Três Tribos. Se tratava de três vilas ancestralmente inimigas. Elas estavam definhando naquele inverno rigoroso, pois os combates acabavam impedindo que caçassem o mínimo necessário. Literalmente a raiva as estava matando. O grande Ghurtak, é assim que alguns o chamam, estava atento e não deixou que esse fim chegasse à eles. Na noite que é considerada como a mais fria, a mais longa e a mais mortal delas, ele sozinho caçou dezenas de aves de todos os tipos, pequenas e grandes, e as deixou no centro de cada uma das três vilas. Junto ele deixou um recado de que se eles não aprendessem a não se matar mutuamente, no futuro seria a cabeça dos chefes que estariam no centro de cada praça. Diz a lenda que os combates cessaram e que um enorme banquete foi feito com a união das três vilas. Pelo menos é o que diz a lenda, embora seja difícil de acreditar nisso conhecendo os bárbaros da Uivantes.

Depois disso esse dia foi reconhecido como um dia de união, um dia em que os combates são suspensos, um dia para comemorar o ensinamento d’Ele.  E era nisso que Huryn estava envolvida.

Todo ano um jovem bárbaro por vila era mandado para a caça desta tal ave, enorme e suculenta. Ela seria o prato principal no banquete em homenagem ao deus que Ghurtak havia se tornado para os povos das Montanhas Uivantes. Tê-la na mesa era sinal de que a vila seria agraciada com sorte e sabedoria, além de ser protegida com as graças do deus, até o próximo inverno.

Huryn já nem imaginava à quantas horas estava caçando. Seus pés estavam exaustos e já havia encontrado e perdido o rastro por várias vezes. Ela havia reencontrado o rastro à pouco tempo e com o adiantado da hora ela tinha de achá-la o mais rápido que pudesse, ou chegaria na vila tarde demais. Como a tradição mandava, ela levava uma rede simples, uma adaga e um conjunto de pedras amarradas com corda para serem lançadas nas patas da presa. Ela poderia usar outras ferramentas e armas, desde que as construísse com o que tinha em mãos. Toda esta dificuldade servia também para que a jovem caçadora fizesse a passagem e fosse considerada uma adulta. Na verdade ela nem precisava conseguir a caça, o simples fato de sobreviver à tentativa já servia como rito de passagem. Mas não conseguir capturar a criatura para o banquete era sinal muito mau agouro para o ano vindouro, além de uma decepção para a família perante a tribo.

Esta tradição abrangia as comunidades de uma enorme área das Uivantes, desde as Estepes Selvagens até a Montanha Invencível e chegando bem próximo das vilas da Floresta de Gelo. Ninguém saberia precisar quantas pequenas vilas existiam ali, todas acreditando na lenda das três tribos, mas Huryn sabia que todas essas comunidades, de uma forma ou de outra, seguiam a mesma tradição, ou muito semelhante, e vários jovens estavam à procura de uma caça especial naquele momento. Ela já havia encontrado duas ou três pegadas semelhantes à dela indo para lá e para cá, e tinha certeza que as suas já deviam ter chamado a atenção de alguém. De qualquer forma seu trabalho precisava de concentração e deixou de lado toda a preocupação para focar na sua perseguição.

O animal que estava seguindo parecia ser muito grande, maior que o normal, o que era uma ótima notícia. Acreditavam que quanto maior a presa, maior a sorte e benção de Ghurtak. Mas sua mente não conseguia desligar. Ela, por mais de uma vez, se perdeu em seus pensamentos. Por que estava ali? Por que a sorte de todos estava em suas mãos? E se ela falhasse, a vila viria a ser prejudicada realmente? Isso seria justo? Por que tinham que seguir o exemplo de alguém que morreu à tanto tempo? E seu pai, o chefe, como seria para ele caso falhasse? Seu estômago revirava com cada novo questionamento. Ela só desejava chegar na manhã seguinte o mais rápido possível e terminar com aquele teste.

Um galho quebrando chamou sua atenção e Huryn instintivamente pulo para o chão tal qual um felino em alerta. A vestimenta feita da pelagem de um tigre-das-neves servia como uma ótima camuflagem quando nesta posição. Seus ouvidos estavam aguçados tentando localizar a direção do som.

Trinta metros à frente ela percebeu uma enorme ave, sua presa, o motivo de estar ali naquele frio e o motivo de esperança de toda a sua tribo. Ela parecia não ter percebido sua presença, mas também não percebeu a presença de outra pessoa ali perto, alguns metros à frente de Huryn, um ainda mais jovem bárbaro que pelas marcas de pintura no rosto indicavam ser da tribo Tryajoc, mais ao sul da sua vila.

Seu concorrente era ainda mais jovem que ela, pelo menos em dois invernos. Mal tinha alguns pêlos no rosto e os músculos ainda eram pouco desenvolvidos, embora fosse relativamente mais alto. Ele estava agachado atrás de uma pedra com um semblante de claro pavor e medo que a divertia. Ele estava com uma adaga na mão embora estivesse claro que a última coisa que pretendia fosse um combate direto.

Huryn decidiu esperar para ver o que acontecia se acomodando atrás de um tronco grosso e caído. Era um momento que a deixava realmente desligada de suas obrigações.

O rapaz estava nitidamente apavorado e sem saber o que fazer. Huryn olhava para ele e para a presa enquanto criava dezenas de abordagens para aquela situação, nem todas com a confirmação de que conseguiria sucesso, mas todas passíveis de sucesso. Ela analisava o terreno, a posição da presa e do rapaz, possíveis coberturas para chegar mais perto, além de que o animal o ignorava. Mas o rapaz não se movia. Não esboçava nenhum gesto de que sairia para o ataque. Ela já estava apreensiva, pois o tempo andava sem trégua e a noite estava cada vez mais próxima.

Quando o rapaz começou a se mover depois de um longo suspiro ela não acreditou no que viu. A única estratégia que não deveria ser assumida ali, entre tantas árvores e obstáculos era justamente a que ele usaria. Ele ficou em posição de ataque enquanto em uma das mãos manuseava as três pedras atadas por um corda. Seu uso era simples, você as jogava girando para que se emaranhassem nas pernas do alvo, derrubando-o. Era perfeito, mas não ali, entre tantos galhos, pedras e obstáculos. Essa ação erra só serviria para ou assustar a presa e correr o risco de perdê-la, ou para irritá-la e correr o risco de morrer.

Quando ele começou a girar as pedras sobre a cabeça ela tentou fazer sinais para alertá-lo, mas ele foi rápido, lançando o aparato em direção ao alvo. O Resultado foi o esperado. As pedras foram se batendo em diversos alvos e obstáculos até caírem aos pés da criatura a assustando justamente na direção do rapaz. Ela correu velozmente diretamente para ele numa mescla de susto e raiva, deixando o pequeno bárbaro paralisado. Huryn não teve tempo de fazer nada. A enorme criatura passou correndo pelo rapaz lançando-o de encontro à uma árvore e deixando seu corpo inerte no chão.

Huryn apenas observava, pois não teve tempo de fazer nada. Sua esperança era de que a criatura continuasse correndo, não ameaçando a vida do infeliz. Mas a criatura pareceu não ter apreciado a tentativa de agressão do rapaz e derrapou sobre as patas, metros à frente, e voltou para uma nova investida.

Ela praguejou em silêncio. Agora teria de lidar com a criatura com o acréscimo de salvar o estúpido que conseguiu enfurecê-la. Ela puxou para junto de si a lança improvisada que havia feito, jogou a vestimenta no chão para não a atrapalhar e correu na direção da criatura que ainda a ignorava. A lança era sua arma preferida, dom que herdara de sua mãe e treinada por ela. Por isso mesmo foi a primeira coisa que construiu quando deixou a aldeia para esta tarefa. Ela iria colocar à prova todo o seu aprendizado e estava feliz por isso.

Ela correu alguns metros para pegar impulso, vindo pelo flanco do animal, e pulou sobre uma pedra para lançar-se sobre seu pescoço. Mas o animal também tinha seus instintos e sabia muito bem como fugir de emboscadas e ataques sorrateiros. Ele deu uma nova travada deixando-a passar bem à sua frente e fora de alcance. Huryn caiu rolando no chão, mas com maestria ela conseguiu parar de joelhos já pronta para uma nova investida.

O animal deixou de prestar a atenção no rapaz, que ainda estava inerte, e focou na menina, que parecia ser muito mais ameaçadora naquele momento. Com suas enormes patas ela tentou acertá-la vezes seguidas, mas Huryn esquivava e rolava para longe de forma defensiva. Enquanto isso sua mente não parava de trabalhar em uma solução. Aqueles animais era fáceis de serem pegos quando desprevenidos, mas em combates diretos eram mortais. A jovem bárbara saltou para trás em um mortal para pegar distância e ficar longe também das bicadas da criatura.

Ela tentou uma investida mais direta e correu na direção da criatura para tentar intimidá-la e ter chance de um golpe certeiro, mas a enorme ave conseguiu esquivar novamente e acertá-la com um poderosa patada jogando-a alguns metros para trás. A criatura parecia satisfeita. Ela a olhava com olhos de fúria, ao mesmo tempo que demonstrava ser superior.

Huryn ainda atordoada, de uma só vez pegou sua lança e a quebrou ao meio com a ajuda do joelho, ficando com a extremidade que tinha a faca amarrada. Isso daria mais mobilidade para seus ataques. Ela olhou para a criatura e rosnou algumas palavras em seu dialeto e correu novamente na direção da ave. Mas sua estratégia havia mudado levemente. Ao invés de pular na direção da criatura, ela pulara um pouco mais para a direita, na direção de uma árvore, pegando a criatura desprevenida, e usando o tronco como apoio, catapultando-se para as suas costas, cravando a meia lança no que seria a nuca do animal com toda a força que tinha.

Huryn caiu meio sem jeito ao mesmo tempo que a criatura cambaleava e caia para o outro lado. Estava feito. A dor na lateral a lembrou que provavelmente havia quebrado uma ou duas costelas, além de uma corte, que pela profundidade, deixaria uma bela cicatriz em suas costas. E isso era ótimo. Eram as suas marcas da vitória. Que bárbaro existia sem elas?

Ela confirmou se a criatura estava realmente morta com mais uma estocada e foi ver como o garoto estava. Ele ainda estava inconsciente e bem machucado. Era apenas um menino crescido, além de ser um guerreiro despreparado. Nunca teria sobrevivido à um combate contra aquilo.

Quando o menino começou a se mover, recuperando lentamente a consciência, um flash em sua mente a colocou para se mover como que por instinto. Ela pegou a adaga do jovem bárbaro que estava no chão, correu para a fera morta e cravou-lhe no pescoço, bem sobre o local da estocada mortal. Depois correu, pegou o que havia sobrado de sua lança, e jogou-se por entre os arbustos, onde havia deixado sua capa.

De longe ela observou que o rapazinho acordou lentamente e assustou-se ao ver a criatura no chão. Meio incrédulo ele se levantou e verificou a sua adaga na nuca e com o cenho franzido foi tentando conjecturar o que havia acontecido. Em sua mente o animal o atacara e ele, por instinto, ao ser atingido, havia cravado-lhe a adaga e depois caído desacordado. Um sorriso foi nascendo em seu rosto e logo ele começou a dançar e pular ao redor do animal.

Huryn foi se afastando silenciosamente enquanto o jovem começava a preparar o transporte da criatura para sua tribo. Quando já estava à algumas centenas de metros ela percebeu um som vindo de cima. Ao seu lado aterrissou três enormes figuras vestindo pesadas capas marrons de pele de urso. Eram seu pai, o chefe de caça da tribo e um dos anciões. Eles apenas olhavam para ela com rostos inquisidores.

Huryn não se assustou ou se abalou com a presença deles. Ela sabia que o pai e os outros provavelmente a seguiram para ver seu desempenho já que ela, em algum momento no futuro, seria a chefe da tribo. Provavelmente eles tinham visto tudo o que se passara e queriam uma justificativa. Ela olhou seriamente para os três, um à um, fechou ainda mais o rosto e bufou como que perguntando se ainda era necessária uma explicação e continuou andando.

Com passos firmes ela passou por eles em direção da vila, deixando-os para trás. Mas o silêncio foi interrompido por uma longa gargalhada das três figuras masculinas que puseram-se a segui-la e a cumprimentá-la  da forma agressiva e vivaz que só os bárbaros sabem.

Eles estavam orgulhosos dela por sua atitude. Nada valia para os bárbaros a fama dos seus atos. Isso era uma atitude para os povos e raças das terras quentes. Para eles o que importava era a honra de tomar a atitude correta, a satisfação de se saber capaz de algo, de saber que tomarão a melhor decisão para todos. E ela aprendeu e tomou todas essas atitudes. Ela aprenderá tudo o que o grande Ghurtak havia ensinado aos bárbaros. Ela sabia que aquele infeliz nunca conseguiria terminar a missão vivo e que toda a tribo sente falta de qualquer braço forte para lutar, mesmo que para ele ainda faltasse muito para isso. Ela sabia que aquele rapaz, não atingindo a honra naquele dia, nunca mais a alcançaria. Mas para ela isso tudo não importava, pois ela sabia do era capaz, do que era capaz de alcançar. Ela sabia qual era o certo a ser feito. Naquela época, naquele dia em especial, aquela atitude fazia todo o sentido.

Naquela noite a tribo comeu raízes e um pouco de peixe, mas a festa que aconteceu foi como se ela tivesse capturado a maior das presas, pois todos sabiam que ela seria uma ótima líder, que ela seguiria os preceitos do deus. Presentes foram trocados, congratulações foram rosnadas e muito hidromel consumido. De longe o grande chefe da tribo, com sua esposa ao seu lado, observava orgulhoso Huryn, o centro das atenções. Não por sua beleza ou por ser sua filha, mas por ter a condição de liderar, por ter a sabedoria reconhecida por todos. No futuro, não importava o que lhes reservava, ele sabia que ela saberia como conduzir a tribo por entre qualquer adversidade.

Naquela noite, em muitas tribos, o mesmo acontecia. A mesma mensagem deixada por Ghurtak era fortalecida, era ensinada, era confirmada. Por incontáveis anos ela vivia e continuaria assim por tantos outros invernos. Uma mensagem que os povos do resto de Arton não conheciam, ou tinham resistência em compreender. Uma mensagem que esses povos e raças mais à leste desdenhavam.

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