A bárbara e a caça
- Uma fábula de Natal em Arton -
João Eugênio C. Brasil
A
pequena Huryn afundava as botas de couro de cervo na neve enquanto seguia o
rastro de sua presa. Já faziam algumas horas desde de que ela localizara as
sutis marcas na neve. Não fosse o tempo firme do último dia e a neve teria
coberto tudo.
De
qualquer forma a nevasca da última semana havia deixado quase meio metro de
neve em toda a extensão das Montanhas Uivantes, o reino gelado do leste, e isso
era um complicador à mais para ela se deslocar, embora essa fosse uma de suas
especialidades.
Um
dia antes o chefe do clã, que também era seu pai, pedira para que ela assumisse
a missão de conseguir uma caça digna, uma ave muito peculiar, estranha e
perigosa daquela região, mas igualmente saborosa. Mas não só por suas
peculiaridades é que tal presa fora determinada. Ela era um símbolo também. Seria
a oferenda da tribo ao seu deus, um deus menor, é verdade, mas a divindade que
eles adoravam. Todo ano, naquela mesma época, quando as nevascas ficavam quase
que constantes, muitas tribos de bárbaros da região lembravam de um dos seus.
Ele não tinha nome, ou pelo menos não lembravam qual era. Mas sua história era
passada geração após geração nas beiradas das fogueiras, nas conversas entre aprendizes
e mestres, nas noites frias dentro das casas.
Esse
irmão sem nome havia se sacrificado em uma das grandes guerras entre os clãs,
quando eles ainda procuravam por diferenças e não por semelhanças, para salvar
todos, sem excessão. Há incontáveis luas, antes ainda dos avôs de seus avôs,
esse homem conseguiu, com sua morte, unir à todos. Mas não só isso. Antes ainda
de sua morte ele alimentou aliados e inimigos, protegeu indefesos e ensinou os
mais fracos. Com sua espada e seu arco ele mostrou o quer era ser bárbaro e o
que era ser digno. E sua história era passada geração após geração.
Mas
nesta época, em especial, todos contavam a lenda de sua aventura para alimentar
As Três Tribos. Se tratava de três vilas ancestralmente inimigas. Elas estavam
definhando naquele inverno rigoroso, pois os combates acabavam impedindo que
caçassem o mínimo necessário. Literalmente a raiva as estava matando. O grande
Ghurtak, é assim que alguns o chamam, estava atento e não deixou que esse fim
chegasse à eles. Na noite que é considerada como a mais fria, a mais longa e a
mais mortal delas, ele sozinho caçou dezenas de aves de todos os tipos,
pequenas e grandes, e as deixou no centro de cada uma das três vilas. Junto ele
deixou um recado de que se eles não aprendessem a não se matar mutuamente, no
futuro seria a cabeça dos chefes que estariam no centro de cada praça. Diz a
lenda que os combates cessaram e que um enorme banquete foi feito com a união
das três vilas. Pelo menos é o que diz a lenda, embora seja difícil de acreditar
nisso conhecendo os bárbaros da Uivantes.
Depois
disso esse dia foi reconhecido como um dia de união, um dia em que os combates
são suspensos, um dia para comemorar o ensinamento d’Ele. E era nisso que Huryn estava envolvida.
Todo
ano um jovem bárbaro por vila era mandado para a caça desta tal ave, enorme e
suculenta. Ela seria o prato principal no banquete em homenagem ao deus que Ghurtak
havia se tornado para os povos das Montanhas Uivantes. Tê-la na mesa era sinal
de que a vila seria agraciada com sorte e sabedoria, além de ser protegida com
as graças do deus, até o próximo inverno.
Huryn
já nem imaginava à quantas horas estava caçando. Seus pés estavam exaustos e já
havia encontrado e perdido o rastro por várias vezes. Ela havia reencontrado o
rastro à pouco tempo e com o adiantado da hora ela tinha de achá-la o mais
rápido que pudesse, ou chegaria na vila tarde demais. Como a tradição mandava,
ela levava uma rede simples, uma adaga e um conjunto de pedras amarradas com
corda para serem lançadas nas patas da presa. Ela poderia usar outras
ferramentas e armas, desde que as construísse com o que tinha em mãos. Toda
esta dificuldade servia também para que a jovem caçadora fizesse a passagem e
fosse considerada uma adulta. Na verdade ela nem precisava conseguir a caça, o
simples fato de sobreviver à tentativa já servia como rito de passagem. Mas não
conseguir capturar a criatura para o banquete era sinal muito mau agouro para o
ano vindouro, além de uma decepção para a família perante a tribo.
Esta
tradição abrangia as comunidades de uma enorme área das Uivantes, desde as
Estepes Selvagens até a Montanha Invencível e chegando bem próximo das vilas da
Floresta de Gelo. Ninguém saberia precisar quantas pequenas vilas existiam ali,
todas acreditando na lenda das três tribos, mas Huryn sabia que todas essas
comunidades, de uma forma ou de outra, seguiam a mesma tradição, ou muito
semelhante, e vários jovens estavam à procura de uma caça especial naquele
momento. Ela já havia encontrado duas ou três pegadas semelhantes à dela indo
para lá e para cá, e tinha certeza que as suas já deviam ter chamado a atenção
de alguém. De qualquer forma seu trabalho precisava de concentração e deixou de
lado toda a preocupação para focar na sua perseguição.
O
animal que estava seguindo parecia ser muito grande, maior que o normal, o que
era uma ótima notícia. Acreditavam que quanto maior a presa, maior a sorte e
benção de Ghurtak. Mas sua mente não conseguia desligar. Ela, por mais de uma
vez, se perdeu em seus pensamentos. Por que estava ali? Por que a sorte de todos
estava em suas mãos? E se ela falhasse, a vila viria a ser prejudicada
realmente? Isso seria justo? Por que tinham que seguir o exemplo de alguém que
morreu à tanto tempo? E seu pai, o chefe, como seria para ele caso falhasse? Seu
estômago revirava com cada novo questionamento. Ela só desejava chegar na manhã
seguinte o mais rápido possível e terminar com aquele teste.
Um
galho quebrando chamou sua atenção e Huryn instintivamente pulo para o chão tal
qual um felino em alerta. A vestimenta feita da pelagem de um tigre-das-neves
servia como uma ótima camuflagem quando nesta posição. Seus ouvidos estavam
aguçados tentando localizar a direção do som.
Trinta
metros à frente ela percebeu uma enorme ave, sua presa, o motivo de estar ali
naquele frio e o motivo de esperança de toda a sua tribo. Ela parecia não ter
percebido sua presença, mas também não percebeu a presença de outra pessoa ali
perto, alguns metros à frente de Huryn, um ainda mais jovem bárbaro que pelas
marcas de pintura no rosto indicavam ser da tribo Tryajoc, mais ao sul da sua
vila.
Seu
concorrente era ainda mais jovem que ela, pelo menos em dois invernos. Mal
tinha alguns pêlos no rosto e os músculos ainda eram pouco desenvolvidos,
embora fosse relativamente mais alto. Ele estava agachado atrás de uma pedra
com um semblante de claro pavor e medo que a divertia. Ele estava com uma adaga
na mão embora estivesse claro que a última coisa que pretendia fosse um combate
direto.
Huryn
decidiu esperar para ver o que acontecia se acomodando atrás de um tronco
grosso e caído. Era um momento que a deixava realmente desligada de suas obrigações.
O
rapaz estava nitidamente apavorado e sem saber o que fazer. Huryn olhava para ele
e para a presa enquanto criava dezenas de abordagens para aquela situação, nem
todas com a confirmação de que conseguiria sucesso, mas todas passíveis de sucesso.
Ela analisava o terreno, a posição da presa e do rapaz, possíveis coberturas
para chegar mais perto, além de que o animal o ignorava. Mas o rapaz não se
movia. Não esboçava nenhum gesto de que sairia para o ataque. Ela já estava
apreensiva, pois o tempo andava sem trégua e a noite estava cada vez mais
próxima.
Quando
o rapaz começou a se mover depois de um longo suspiro ela não acreditou no que
viu. A única estratégia que não deveria ser assumida ali, entre tantas árvores
e obstáculos era justamente a que ele usaria. Ele ficou em posição de ataque
enquanto em uma das mãos manuseava as três pedras atadas por um corda. Seu uso
era simples, você as jogava girando para que se emaranhassem nas pernas do
alvo, derrubando-o. Era perfeito, mas não ali, entre tantos galhos, pedras e obstáculos.
Essa ação erra só serviria para ou assustar a presa e correr o risco de perdê-la,
ou para irritá-la e correr o risco de morrer.
Quando
ele começou a girar as pedras sobre a cabeça ela tentou fazer sinais para
alertá-lo, mas ele foi rápido, lançando o aparato em direção ao alvo. O Resultado
foi o esperado. As pedras foram se batendo em diversos alvos e obstáculos até caírem
aos pés da criatura a assustando justamente na direção do rapaz. Ela correu
velozmente diretamente para ele numa mescla de susto e raiva, deixando o
pequeno bárbaro paralisado. Huryn não teve tempo de fazer nada. A enorme
criatura passou correndo pelo rapaz lançando-o de encontro à uma árvore e deixando
seu corpo inerte no chão.
Huryn
apenas observava, pois não teve tempo de fazer nada. Sua esperança era de que a
criatura continuasse correndo, não ameaçando a vida do infeliz. Mas a criatura
pareceu não ter apreciado a tentativa de agressão do rapaz e derrapou sobre as
patas, metros à frente, e voltou para uma nova investida.
Ela
praguejou em silêncio. Agora teria de lidar com a criatura com o acréscimo de
salvar o estúpido que conseguiu enfurecê-la. Ela puxou para junto de si a lança
improvisada que havia feito, jogou a vestimenta no chão para não a atrapalhar e
correu na direção da criatura que ainda a ignorava. A lança era sua arma
preferida, dom que herdara de sua mãe e treinada por ela. Por isso mesmo foi a
primeira coisa que construiu quando deixou a aldeia para esta tarefa. Ela iria
colocar à prova todo o seu aprendizado e estava feliz por isso.
Ela
correu alguns metros para pegar impulso, vindo pelo flanco do animal, e pulou
sobre uma pedra para lançar-se sobre seu pescoço. Mas o animal também tinha
seus instintos e sabia muito bem como fugir de emboscadas e ataques
sorrateiros. Ele deu uma nova travada deixando-a passar bem à sua frente e fora
de alcance. Huryn caiu rolando no chão, mas com maestria ela conseguiu parar de
joelhos já pronta para uma nova investida.
O
animal deixou de prestar a atenção no rapaz, que ainda estava inerte, e focou
na menina, que parecia ser muito mais ameaçadora naquele momento. Com suas
enormes patas ela tentou acertá-la vezes seguidas, mas Huryn esquivava e rolava
para longe de forma defensiva. Enquanto isso sua mente não parava de trabalhar
em uma solução. Aqueles animais era fáceis de serem pegos quando desprevenidos,
mas em combates diretos eram mortais. A jovem bárbara saltou para trás em um
mortal para pegar distância e ficar longe também das bicadas da criatura.
Ela
tentou uma investida mais direta e correu na direção da criatura para tentar
intimidá-la e ter chance de um golpe certeiro, mas a enorme ave conseguiu esquivar
novamente e acertá-la com um poderosa patada jogando-a alguns metros para trás.
A criatura parecia satisfeita. Ela a olhava com olhos de fúria, ao mesmo tempo
que demonstrava ser superior.
Huryn
ainda atordoada, de uma só vez pegou sua lança e a quebrou ao meio com a ajuda
do joelho, ficando com a extremidade que tinha a faca amarrada. Isso daria mais
mobilidade para seus ataques. Ela olhou para a criatura e rosnou algumas
palavras em seu dialeto e correu novamente na direção da ave. Mas sua
estratégia havia mudado levemente. Ao invés de pular na direção da criatura,
ela pulara um pouco mais para a direita, na direção de uma árvore, pegando a
criatura desprevenida, e usando o tronco como apoio, catapultando-se para as suas
costas, cravando a meia lança no que seria a nuca do animal com toda a força
que tinha.
Huryn
caiu meio sem jeito ao mesmo tempo que a criatura cambaleava e caia para o
outro lado. Estava feito. A dor na lateral a lembrou que provavelmente havia
quebrado uma ou duas costelas, além de uma corte, que pela profundidade, deixaria
uma bela cicatriz em suas costas. E isso era ótimo. Eram as suas marcas da
vitória. Que bárbaro existia sem elas?
Ela
confirmou se a criatura estava realmente morta com mais uma estocada e foi ver
como o garoto estava. Ele ainda estava inconsciente e bem machucado. Era apenas
um menino crescido, além de ser um guerreiro despreparado. Nunca teria sobrevivido
à um combate contra aquilo.
Quando
o menino começou a se mover, recuperando lentamente a consciência, um flash em
sua mente a colocou para se mover como que por instinto. Ela pegou a adaga do
jovem bárbaro que estava no chão, correu para a fera morta e cravou-lhe no
pescoço, bem sobre o local da estocada mortal. Depois correu, pegou o que havia
sobrado de sua lança, e jogou-se por entre os arbustos, onde havia deixado sua
capa.
De
longe ela observou que o rapazinho acordou lentamente e assustou-se ao ver a
criatura no chão. Meio incrédulo ele se levantou e verificou a sua adaga na
nuca e com o cenho franzido foi tentando conjecturar o que havia acontecido. Em
sua mente o animal o atacara e ele, por instinto, ao ser atingido, havia
cravado-lhe a adaga e depois caído desacordado. Um sorriso foi nascendo em seu
rosto e logo ele começou a dançar e pular ao redor do animal.
Huryn
foi se afastando silenciosamente enquanto o jovem começava a preparar o
transporte da criatura para sua tribo. Quando já estava à algumas centenas de metros
ela percebeu um som vindo de cima. Ao seu lado aterrissou três enormes figuras
vestindo pesadas capas marrons de pele de urso. Eram seu pai, o chefe de caça
da tribo e um dos anciões. Eles apenas olhavam para ela com rostos inquisidores.
Huryn
não se assustou ou se abalou com a presença deles. Ela sabia que o pai e os
outros provavelmente a seguiram para ver seu desempenho já que ela, em algum
momento no futuro, seria a chefe da tribo. Provavelmente eles tinham visto tudo
o que se passara e queriam uma justificativa. Ela olhou seriamente para os
três, um à um, fechou ainda mais o rosto e bufou como que perguntando se ainda
era necessária uma explicação e continuou andando.
Com
passos firmes ela passou por eles em direção da vila, deixando-os para trás. Mas
o silêncio foi interrompido por uma longa gargalhada das três figuras
masculinas que puseram-se a segui-la e a cumprimentá-la da forma agressiva e vivaz que só os bárbaros
sabem.
Eles
estavam orgulhosos dela por sua atitude. Nada valia para os bárbaros a fama dos
seus atos. Isso era uma atitude para os povos e raças das terras quentes. Para
eles o que importava era a honra de tomar a atitude correta, a satisfação de se
saber capaz de algo, de saber que tomarão a melhor decisão para todos. E ela
aprendeu e tomou todas essas atitudes. Ela aprenderá tudo o que o grande
Ghurtak havia ensinado aos bárbaros. Ela sabia que aquele infeliz nunca
conseguiria terminar a missão vivo e que toda a tribo sente falta de qualquer
braço forte para lutar, mesmo que para ele ainda faltasse muito para isso. Ela
sabia que aquele rapaz, não atingindo a honra naquele dia, nunca mais a
alcançaria. Mas para ela isso tudo não importava, pois ela sabia do era capaz,
do que era capaz de alcançar. Ela sabia qual era o certo a ser feito. Naquela
época, naquele dia em especial, aquela atitude fazia todo o sentido.
Naquela
noite a tribo comeu raízes e um pouco de peixe, mas a festa que aconteceu foi
como se ela tivesse capturado a maior das presas, pois todos sabiam que ela
seria uma ótima líder, que ela seguiria os preceitos do deus. Presentes foram
trocados, congratulações foram rosnadas e muito hidromel consumido. De longe o
grande chefe da tribo, com sua esposa ao seu lado, observava orgulhoso Huryn, o
centro das atenções. Não por sua beleza ou por ser sua filha, mas por ter a
condição de liderar, por ter a sabedoria reconhecida por todos. No futuro, não
importava o que lhes reservava, ele sabia que ela saberia como conduzir a tribo
por entre qualquer adversidade.
Naquela
noite, em muitas tribos, o mesmo acontecia. A mesma mensagem deixada por
Ghurtak era fortalecida, era ensinada, era confirmada. Por incontáveis anos ela
vivia e continuaria assim por tantos outros invernos. Uma mensagem que os povos
do resto de Arton não conheciam, ou tinham resistência em compreender. Uma mensagem
que esses povos e raças mais à leste desdenhavam.
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