domingo, 15 de março de 2015

Por mares nunca antes navegados - Parte 1 - Capítulos VI e VII


Parte 1 - Um Longo Prelúdio -

João Eugênio C. Brasil


VI. Surpresas sem limite


Aquilo era incrível aos olhos de Slocun e de seus acompanhantes. À frente deles, desvencilhando-se dos pesados trajes, surgia algo sem sinônimos. O capitão Tyllon, ao tirar o capuz pesado de lã marrom, surgiu como um descomunal lobo. Pelo menos à cabeça era pertencente à uma fera. Os pêlos marrons escuros de sua cabeça geravam um contraste com seus olhos de um azul vivo. Possuía membros e dorso humanos, assim como mãos. Mas tudo era coberto por uma pelagem amarronzada sutil.
O espanto não foi de forma alguma sutil, sendo percebido de imediato por todos os integrantes do outro bote.
- Já vi esta expressão, mas somente nas mulheres das tavernas, frente a minha beleza – disse Tyllon brincando, sem a noção do que se passava na cabeça dos outros três.
- Mas...não estou entendendo. Quem é você? Ou melhor, o que é você? – Slocun não era dado a surpreender-se à ponto de ficar sem ação. Mas aquela era uma situação ímpar.
- Eu é que não entendo. Conhece-me, por ventura? Já lhe fiz algo? Possui alguma desavença com algum membro que compartilhe de minha herança? – o desconforto com as caretas involuntárias de surpresa já estavam começando a incomodar Gares.
- Isso explica as marcas – disse baixo e calmamente Syan, que acompanhava Slocun, no bote, que sempre considerava aconselhável levar uma pessoa conhecedora das artes mágicas, divinas ou arcanas em situações como esta.
- Acho que tudo seria melhor compreendido se pudermos lamber os beiços com um bom rum – esbravejou Gares
- De acordo, mas onde – era o falso capitão, já assumindo sua posição devida -Não temos aqui um local neutro suficiente para uma boa bebedeira.
- Capitão Slocun – interrompeu Syan - não sei se concordará comigo, mas considero que não há perigo. Nem magicamente percebo qualquer hostilidade. Acho que poderíamos adentrar ao navio de nosso recém conhecido. Com mais alguns homens, é claro – continuava com um sorriso singelo – e com toda a certeza o senhor Gares poderia colocar alguns homens seus em nossa embarcação. Isso seria bem justo.
- Isso parece bem divertido e justo – respondeu com um amplo sorriso o capitão Gares – se nosso estupefato capitão não recusar. E por falar nisso, estamos com uma boa safra de rum e vinho que conseguimos de um desonesto colega.
- Desculpe-me a surpresa. Também considero não haver nenhum problema. Que seja. Voltaremos ao nosso navio e retornaremos ao entardecer – e Slocun deu ordens para retornarem ao Gaivota.

o  O  o

Era uma noite de festa naquele canto afastado do oceano. Haviam mesas improvisadas em cada navio, repletas de toda a natureza de comida e bebida. Muita alegria, música, diversão e rum, muito rum. Era simplesmente inacreditável como isto acontecia apenas algumas horas após uma inundação de perplexidade.
O novo sempre foi visto com ressalva e desconfiança. Ainda mais quando se está no meio do nada e lidando com piratas. Mas também temos de concordar que é difícil encontrar seres mais carismáticos do que os que tiram seu sustento da pilhagem naval.
O primeiro contato, quando as tripulações se misturaram, beirou o surreal. Para a tripulação do Gaivota Prateada era simplesmente impensável o que estava acontecendo. Do Alcatéia – este era o nome do Clipper de Gares – saíram muitos humanos, mas também saíram muitos outros seres “estranhos”, aos olhos dos artonianos. A variedade era grande. Alguns com marcas sutis tais como olhos com o riscado típico dos felinos, outros com cabelos de cores estranhas ou ainda pelos por todo o corpo. Mas outros tinham marcas bem mais gritantes. Caudas, garras, a cabeça animalesca de um touro – um pouco diferente dos naturais de Tapista – e de muitos outros animais, pelagens como de hienas ou até penas e olhos de coruja. Em suas mentes os sonhos haviam ganho forma e circulavam pelo convés do Gaivota Prateada.
Do outro lado a reação era um pouco distinta. A perplexidade dos marujos do Alcatéia residia no fato de não compreenderem o porque das reações frente as suas aparências e em desconhecerem a origem dos tripulantes do navio de Slocun.
Mas nada que uma boa noitada de rum com música não apaziguasse.
Enquanto isso, na cabine do Alcatéia, um encontro um pouco mais reservado era realizado. Não havia menos comida, rum ou música por lá, mas os ânimos estavam bem mais controlados.
- Estou verdadeiramente confuso – resmungava Slocun balançando a cabeça como se desejasse que alguém lhe explicasse o que se passava – como assim nunca ouviu falar de Bielefeld ou do Reinado. Em que mundo tem vivido, meu caro?
- É como lhe disse, nada do que me falas é reconhecido por mim.
- E a sua aparência também não me faz referência alguma. Nunca vi nada tão ímpar quanto sua tripulação.
- É verdade capitão Gares – disse Syan entrando na conversa – nem em meus estudos, nas academias do conhecimento de Tanna-toh, tomei conhecimento sobre essas raças.
- Bom não sei o que é esse tal de Tana-alguma-coisa, mas acho que ele deveria se atualizar.
Syan e Slocun se entreolharam. A perplexidade só crescia. O clérigo ficara de boca aberta com os comentários de Gares. E ao que tudo indicava ele não fazia idéia do que falavam. Mesmo os piratas de Arton tinham profundo respeito com as divindades de lá.
- Realmente não sabes do que falamos – comentou em tom baixo o capitão do Gaivota tomando ciência de que o desconhecimento de Gares era sincero.
- Creio que está acontecendo algo incomum aqui – retorquiu Gares – senhor Suni, tragam-nos as cartas desta região e das costas de Laughton e Luncaster. Assim poderemos pelos menos localizar a origem destes senhores.
O imediato saiu correndo para obedecer às ordens. Era uma figura pequena – um pouco mais de um metro e meio – com cabelos de um verde agressivo. Tão rápido quanto foi, retornou com um amontoado de rolos de papel de diversos tamanhos. Os depositou sobre a mesa que já se encontrava com pratos e canecas afastados.
Suni escolheu um deles em especial e o colocou por cima dos outros, bem aberto. Correu o dedo sobre ele declarando para Gares – Estamos aqui senhor. À duas semanas dos pequenos arquipélagos ao sul das Domeniques e a três semanas de Luncaster.
- De onde vocês são caros amigos? Mostre-nos.
Slocun, Tugar e Syan debruçaram-se por um longo tempo sobre as cartas tentando vislumbrar algum ponto de referência. Mas foi em vão. Slocun pediu para um de seus homens retornar ao Gaivota e trazer algumas de suas cartas de lá. A reação de Gares, ao ver os mapas náuticos de Slocun foi igual – não reconhecia nada.
- Meus amigos, nos somos de lugares muito mais afastados do que imaginávamos. Considero que melhores apresentações devem ser realizadas – o capitão do Alcatéia levantou-se e proferiu de forma solene - Meu nome é Gares Tyllon, capitão do Alcatéia, natural de Prendick, Reino de Laughton, Ilha Nobre de Moreania.
- Eu sou o Joshua Slocun, capitão do Gaivota Prateada, natural de Norm, Reino dos Cavaleiros da Ordem da Luz – Bielefeld - pertencente ao Reinado, em Arton, embora isso não queira dizer muito para mim....hahahahahahahah!.
E deixaram-se dominar pelos risos.
- Temos realmente muito que conversar, caro capitão – esticou a mão Slocun.
- E como temos – retribuiu a gentileza Gares.

o  O  o

Passaram-se três dias de muita festa naqueles dois navios que mais pareciam formar um oásis num deserto de água. Muita informação deveria e foi trocada pelas duas tripulações. Cartas náuticas foram copiadas, rotas marcadas e pontos interessantes assinalados.
Syan passou horas exaustivas junto da bela Pitush - seguidora do Indomável e da Deusa menor Sorinda. Trocaram informações sobre deuses, encantamentos e todo o conhecimento para eles interessante. Todos comentavam que a muito tempo não viam Syan tão feliz levando seus cadernos de anotações para todos os lados naqueles dois navios.
Gares e Slocun, depois desses dois dias, mais pareciam conhecerem-se à décadas. Trocaram aventuras, histórias e conquistas amorosas. Compartilharam sonhos e vinganças. Criaram um laço que duraria por muitos anos depois deste e dos próximos encontros.



VII. O último dia...


O terceiro dia nasceu abraçado ao lamento da despedida. Seria o fim daquele encontro inesperado que tornou-se uma imensa festa. Cada um, a sua maneira, realizava os preparativos definitivos para seguirem seu rumo.
Syan permanecia em um torpor acordado de dar pena aos seus colegas. Não admitia a si mesmo deixar uma informação que fosse para trás à respeito do novo mundo de Moreania. Queria guardar cada detalhe que fosse para eternizá-lo em seus pergaminhos e livros posteriormente. Ele já estava acostumado a ser procurado por todos os seus colegas marujos para responder a toda a natureza de dúvidas. Por isso, e pela sua natureza inata de querer saber sempre mais e mais, estava atrás de toda a informação possível.
Tugar também estava fora de seu estado normal. Era comentado por todos no Gaivota que nunca o viram tão calmo e despreocupado. Seu rosto sereno era uma visão surpreendente. Tugar tivera reuniões longas com o mestre do Alcatéia, Brunian, sobre as peculiaridades da navegação em águas desconhecidas por eles.
- O que pretende fazer, caro capitão, agora que descobriu o que existe ao norte de sua terra? – perguntou Gares soltando círculos de fumaça de seu alongado cachimbo.
- Estou verdadeiramente encantado. Acho que meu rumo será o norte, ainda. Há um mundo totalmente novo para ser descoberto. Ao menos para mim.
- Isso me alegre. A beleza do desconhecido. Não há sabor mais viciante. Esta terra é maravilhosa e verás isso com teus próprios olhos.
- Nunca encontrei realmente meu lugar. Quem sabe não estou à caminhos disto nesta nova terra. E tu, Garas? O que pretendes fazer agora que sabes da existência das terras do sul?
- Já estou cansado de pilhar sempre os mesmos imprestáveis. Necessito de imprestáveis novos. No sul poderemos nos divertir um pouco. Quem sabe não esbarro em algum amigo seu – disse o capitão lobo soltando uma risada por entre a fumaça.
- Então que assim seja. Vamos trocar de lares por uns tempos e nos aventurar no desconhecido – proclamou Slocun agarrando e levantando um caneco de rum em um brinde improvisado.
- Vamos escrever nossos nomes na história de dois continentes – acompanhou Garas levantando seu caneco.
E um aperto de mãos selou a alegria mutua e o início de grandes aventuras. Grandes laços foram criados pelos inúmeros membros de ambas as embarcações. Laços estes que, se as embarcações pertencessem ao mesmo lugar, nunca teriam se firmado.
As provisões do Alcatéia foram divididas com os membros do Gaivota. Brunian preparou o percurso inicial para os primeiros dias de viajem de Slocun. Tugar também fez o mesmo para Gares. Syan presenteou Pitush com alguns tomos e pergaminhos sobre assuntos variados relativos à Arton dizendo serem muito úteis para não se cometer certas gafes perigosas, em mar ou terra, nem desembarcar em terras do horror vermelho. Pelo menos no início teriam uma certa segurança. Algumas correspondências foram trocadas pelas tripulações para o caso de aportarem em certos portos de ambos continentes.
Duas horas depois um navio já não conseguia vislumbrar o outro no horizonte. A proa apontava para o desconhecido mútuo de duas almas visionárias. Nas gáveas olhos ávidos por novidades não se cansaram de aplicar-se em sua função. Em ambas embarcações transpirava a jovialidade, a determinação e a alegre beligerância dos homens que vivem da pilhagem no mar.
Nas amuradas de ambas as proas, como figuras espelhadas, capitães tão diferentes e ao mesmo tempo tão parecidos se deixaram agredir pelo vento e pelo suave respingar frio das ondas singradas. Era como se estivessem empreendendo sua primeira aventura no mar. Como se não soubessem mais nada sobre o meio onde estavam navegando. Como se a cada momento, tudo o que respiravam e viam, fosse pela primeira vez sentido por eles. Um privilégio. Era esta a palavra que lhes veio à mente. Eram privilegiados por adentrarem, de peito aberto, no desconhecido.
Realizaram uma prece baixa à seus deuses. Não eram afeitos a isto, mas o momento os tomou de assalto. Era uma ladainha sussurrada pedindo proteção. Agradecendo. Mas, sobretudo, desejando nunca deixarem de sentir aquela doce sensação.
Tinham realmente certeza de serem privilegiados.

E isto era só o começo de grandes aventuras...


Fim do Prelúdio



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