Parte 1 - Um Longo Prelúdio -
João Eugênio C. Brasil
VI.
Surpresas sem limite
Aquilo era incrível aos olhos
de Slocun e de seus acompanhantes. À frente deles, desvencilhando-se dos
pesados trajes, surgia algo sem sinônimos. O capitão Tyllon, ao tirar o capuz
pesado de lã marrom, surgiu como um descomunal lobo. Pelo menos à cabeça era
pertencente à uma fera. Os pêlos marrons escuros de sua cabeça geravam um
contraste com seus olhos de um azul vivo. Possuía membros e dorso humanos,
assim como mãos. Mas tudo era coberto por uma pelagem amarronzada sutil.
O
espanto não foi de forma alguma sutil, sendo percebido de imediato por todos os
integrantes do outro bote.
- Já vi esta expressão, mas
somente nas mulheres das tavernas, frente a minha beleza – disse Tyllon brincando, sem
a noção do que se passava na cabeça dos outros três.
- Mas...não estou entendendo.
Quem é você? Ou melhor, o que é você?
– Slocun não era dado a surpreender-se à ponto de ficar sem ação. Mas aquela
era uma situação ímpar.
- Eu é que não entendo.
Conhece-me, por ventura? Já lhe fiz algo? Possui alguma desavença com algum
membro que compartilhe de minha herança? – o desconforto com as caretas involuntárias de
surpresa já estavam começando a incomodar Gares.
-
Isso explica as marcas
– disse baixo e calmamente Syan, que acompanhava Slocun, no bote, que sempre
considerava aconselhável levar uma pessoa conhecedora das artes mágicas,
divinas ou arcanas em situações como esta.
- Acho que tudo seria melhor
compreendido se pudermos lamber os beiços com um bom rum – esbravejou Gares
-
De acordo, mas onde
– era o falso capitão, já assumindo sua posição devida -Não temos aqui um
local neutro suficiente para uma boa bebedeira.
- Capitão Slocun – interrompeu Syan - não
sei se concordará comigo, mas considero que não há perigo. Nem magicamente
percebo qualquer hostilidade. Acho que poderíamos adentrar ao navio de nosso
recém conhecido. Com mais alguns homens, é claro – continuava com um
sorriso singelo – e com toda a certeza o senhor Gares poderia colocar alguns
homens seus em nossa embarcação. Isso seria bem justo.
- Isso parece bem divertido e
justo –
respondeu com um amplo sorriso o capitão Gares – se nosso estupefato capitão
não recusar. E por falar nisso, estamos com uma boa safra de rum e vinho que
conseguimos de um desonesto colega.
- Desculpe-me a surpresa.
Também considero não haver nenhum problema. Que seja. Voltaremos ao nosso navio
e retornaremos ao entardecer
– e Slocun deu ordens para retornarem ao Gaivota.
o O o
Era uma noite de festa naquele
canto afastado do oceano. Haviam mesas improvisadas em cada navio, repletas de
toda a natureza de comida e bebida. Muita alegria, música, diversão e rum,
muito rum. Era simplesmente inacreditável como isto acontecia apenas algumas
horas após uma inundação de perplexidade.
O novo sempre foi visto com
ressalva e desconfiança. Ainda mais quando se está no meio do nada e lidando
com piratas. Mas também temos de concordar que é difícil encontrar seres mais
carismáticos do que os que tiram seu sustento da pilhagem naval.
O primeiro contato, quando as
tripulações se misturaram, beirou o surreal. Para a tripulação do Gaivota
Prateada era simplesmente impensável o que estava acontecendo. Do Alcatéia –
este era o nome do Clipper de Gares – saíram muitos humanos, mas também saíram
muitos outros seres “estranhos”, aos olhos dos artonianos. A variedade era
grande. Alguns com marcas sutis tais como olhos com o riscado típico dos
felinos, outros com cabelos de cores estranhas ou ainda pelos por todo o corpo.
Mas outros tinham marcas bem mais gritantes. Caudas, garras, a cabeça
animalesca de um touro – um pouco diferente dos naturais de Tapista – e de
muitos outros animais, pelagens como de hienas ou até penas e olhos de coruja.
Em suas mentes os sonhos haviam ganho forma e circulavam pelo convés do Gaivota
Prateada.
Do outro lado a reação era um
pouco distinta. A perplexidade dos marujos do Alcatéia residia no fato de não
compreenderem o porque das reações frente as suas aparências e em desconhecerem
a origem dos tripulantes do navio de Slocun.
Mas nada que uma boa noitada de
rum com música não apaziguasse.
Enquanto isso, na cabine do
Alcatéia, um encontro um pouco mais reservado era realizado. Não havia menos
comida, rum ou música por lá, mas os ânimos estavam bem mais controlados.
- Estou verdadeiramente
confuso – resmungava Slocun balançando a cabeça como se desejasse que
alguém lhe explicasse o que se passava – como assim nunca ouviu falar de
Bielefeld ou do Reinado. Em que mundo tem vivido, meu caro?
- É como lhe disse, nada do
que me falas é reconhecido por mim.
- E a sua aparência também
não me faz referência alguma. Nunca vi nada tão ímpar quanto sua tripulação.
- É verdade capitão Gares
– disse Syan entrando na conversa – nem em meus estudos, nas academias do
conhecimento de Tanna-toh, tomei conhecimento sobre essas raças.
- Bom não sei o que é esse
tal de Tana-alguma-coisa, mas acho que ele deveria se atualizar.
Syan
e Slocun se entreolharam. A perplexidade só crescia. O clérigo ficara de boca
aberta com os comentários de Gares. E ao que tudo indicava ele não fazia idéia
do que falavam. Mesmo os piratas de Arton tinham profundo respeito com as
divindades de lá.
- Realmente não sabes do que
falamos – comentou em tom baixo o capitão do Gaivota tomando ciência de que
o desconhecimento de Gares era sincero.
- Creio que está acontecendo
algo incomum aqui – retorquiu Gares – senhor Suni, tragam-nos as cartas
desta região e das costas de Laughton e Luncaster. Assim poderemos pelos menos
localizar a origem destes senhores.
O imediato saiu correndo para
obedecer às ordens. Era uma figura pequena – um pouco mais de um metro e meio –
com cabelos de um verde agressivo. Tão rápido quanto foi, retornou com um
amontoado de rolos de papel de diversos tamanhos. Os depositou sobre a mesa que
já se encontrava com pratos e canecas afastados.
Suni escolheu um deles em
especial e o colocou por cima dos outros, bem aberto. Correu o dedo sobre ele
declarando para Gares – Estamos aqui senhor. À duas semanas dos pequenos
arquipélagos ao sul das Domeniques e a três semanas de Luncaster.
- De onde vocês são caros
amigos? Mostre-nos.
Slocun, Tugar e Syan
debruçaram-se por um longo tempo sobre as cartas tentando vislumbrar algum
ponto de referência. Mas foi em vão. Slocun pediu para um de seus homens
retornar ao Gaivota e trazer algumas de suas cartas de lá. A reação de Gares,
ao ver os mapas náuticos de Slocun foi igual – não reconhecia nada.
- Meus amigos, nos somos de
lugares muito mais afastados do que imaginávamos. Considero que melhores
apresentações devem ser realizadas – o capitão do Alcatéia levantou-se e
proferiu de forma solene - Meu nome é Gares Tyllon, capitão do Alcatéia,
natural de Prendick, Reino de Laughton, Ilha Nobre de Moreania.
-
Eu sou o Joshua Slocun, capitão do Gaivota Prateada, natural de Norm, Reino
dos Cavaleiros da Ordem da Luz – Bielefeld - pertencente ao Reinado, em Arton,
embora isso não queira dizer muito para mim....hahahahahahahah!.
E deixaram-se dominar pelos
risos.
- Temos realmente muito que
conversar, caro capitão – esticou a mão Slocun.
- E como temos – retribuiu
a gentileza Gares.
o O o
Passaram-se três dias de muita
festa naqueles dois navios que mais pareciam formar um oásis num deserto de
água. Muita informação deveria e foi trocada pelas duas tripulações. Cartas
náuticas foram copiadas, rotas marcadas e pontos interessantes assinalados.
Syan passou horas exaustivas
junto da bela Pitush - seguidora do Indomável e da Deusa menor Sorinda.
Trocaram informações sobre deuses, encantamentos e todo o conhecimento para
eles interessante. Todos comentavam que a muito tempo não viam Syan tão feliz
levando seus cadernos de anotações para todos os lados naqueles dois navios.
Gares e Slocun, depois desses
dois dias, mais pareciam conhecerem-se à décadas. Trocaram aventuras, histórias
e conquistas amorosas. Compartilharam sonhos e vinganças. Criaram um laço que
duraria por muitos anos depois deste e dos próximos encontros.
VII.
O último dia...
O
terceiro dia nasceu abraçado ao lamento da despedida. Seria o fim daquele
encontro inesperado que tornou-se uma imensa festa. Cada um, a sua maneira,
realizava os preparativos definitivos para seguirem seu rumo.
Syan permanecia em um torpor
acordado de dar pena aos seus colegas. Não admitia a si mesmo deixar uma
informação que fosse para trás à respeito do novo mundo de Moreania. Queria
guardar cada detalhe que fosse para eternizá-lo em seus pergaminhos e livros
posteriormente. Ele já estava acostumado a ser procurado por todos os seus
colegas marujos para responder a toda a natureza de dúvidas. Por isso, e pela
sua natureza inata de querer saber sempre mais e mais, estava atrás de toda a
informação possível.
Tugar também estava fora de seu
estado normal. Era comentado por todos no Gaivota que nunca o viram tão calmo e
despreocupado. Seu rosto sereno era uma visão surpreendente. Tugar tivera
reuniões longas com o mestre do Alcatéia, Brunian, sobre as peculiaridades da
navegação em águas desconhecidas por eles.
- O que pretende fazer, caro
capitão, agora que descobriu o que existe ao norte de sua terra? – perguntou Gares soltando círculos
de fumaça de seu alongado cachimbo.
-
Estou verdadeiramente encantado. Acho que meu rumo será o norte, ainda. Há um
mundo totalmente novo para ser descoberto. Ao menos para mim.
-
Isso me alegre. A beleza do desconhecido. Não há sabor mais viciante. Esta
terra é maravilhosa e verás isso com teus próprios olhos.
-
Nunca encontrei realmente meu lugar. Quem sabe não estou à caminhos disto nesta
nova terra. E tu, Garas? O que pretendes fazer agora que sabes da existência
das terras do sul?
- Já estou cansado de pilhar
sempre os mesmos imprestáveis. Necessito de imprestáveis novos. No sul
poderemos nos divertir um pouco. Quem sabe não esbarro em algum amigo seu – disse o capitão lobo
soltando uma risada por entre a fumaça.
- Então que assim seja. Vamos
trocar de lares por uns tempos e nos aventurar no desconhecido – proclamou Slocun agarrando e
levantando um caneco de rum em um brinde improvisado.
- Vamos escrever nossos nomes
na história de dois continentes
– acompanhou Garas levantando seu caneco.
E um aperto de mãos selou a
alegria mutua e o início de grandes aventuras. Grandes laços foram criados
pelos inúmeros membros de ambas as embarcações. Laços estes que, se as
embarcações pertencessem ao mesmo lugar, nunca teriam se firmado.
As provisões do Alcatéia foram
divididas com os membros do Gaivota. Brunian preparou o percurso inicial para
os primeiros dias de viajem de Slocun. Tugar também fez o mesmo para Gares.
Syan presenteou Pitush com alguns tomos e pergaminhos sobre assuntos variados
relativos à Arton dizendo serem muito úteis para não se cometer certas gafes
perigosas, em mar ou terra, nem desembarcar em terras do horror vermelho. Pelo
menos no início teriam uma certa segurança. Algumas correspondências foram
trocadas pelas tripulações para o caso de aportarem em certos portos de ambos
continentes.
Duas horas depois um navio já
não conseguia vislumbrar o outro no horizonte. A proa apontava para o
desconhecido mútuo de duas almas visionárias. Nas gáveas olhos ávidos por
novidades não se cansaram de aplicar-se em sua função. Em ambas embarcações
transpirava a jovialidade, a determinação e a alegre beligerância dos homens
que vivem da pilhagem no mar.
Nas amuradas de ambas as proas,
como figuras espelhadas, capitães tão diferentes e ao mesmo tempo tão parecidos
se deixaram agredir pelo vento e pelo suave respingar frio das ondas singradas.
Era como se estivessem empreendendo sua primeira aventura no mar. Como se não
soubessem mais nada sobre o meio onde estavam navegando. Como se a cada
momento, tudo o que respiravam e viam, fosse pela primeira vez sentido por
eles. Um privilégio. Era esta a palavra que lhes veio à mente. Eram
privilegiados por adentrarem, de peito aberto, no desconhecido.
Realizaram uma prece baixa à
seus deuses. Não eram afeitos a isto, mas o momento os tomou de assalto. Era
uma ladainha sussurrada pedindo proteção. Agradecendo. Mas, sobretudo,
desejando nunca deixarem de sentir aquela doce sensação.
Tinham realmente certeza de
serem privilegiados.
E isto era só o começo de
grandes aventuras...
Fim do Prelúdio
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