Sobrevivência Incerta
Capítulo 01
O
som de eletricidade ecoava pelo ambiente embora estivesse escuro. O ar saturado
e denso tinha o odor típico de plástico queimado. Ela ainda estava tentando
abrir os olhos embora a vontade que tinha era de manter-se imóvel. A cabeça
ainda girava e partes diferentes do corpo doíam. Ela sabia que definitivamente
haviam caído. A pergunta era por quê?
A
mão tateou instintivamente à procura de sua arma. Um reflexo claro de medo e
proteção. Não queria ser pega despreparada mais uma vez. Lá fora era noite e
apenas algumas sombras podiam ser percebidas ao longe. O vidro frontal estava
intacto, o que era um bom sinal. Seria preciso mais do que essa queda para
danificá-lo, ainda mais com os escudos à plena força como estavam, o que a
deixa ainda mais curiosa sobre o motivo de terem caído.
Forçou
o corpo para frente e percebeu que a nave estava inclinada para estibordo.
Devem ter aterrissado em posição inclinada, o que salvou suas vidas. Ela não
poderia se esquecer de colocar essa manobra na conta de agradecimentos de
Kroan, o que a fez se lembrar - “como estarão os outros?”
Ela
olhou para o assento do piloto, ao alcance de sua mão, mas não encontrou nada
ao tatear. Isso à tirou de seu estado de apatia como uma daquelas ampolas de
adrenalina usadas em momentos do combate.
“Filho
da mãe... onde está aquele moleque?” - embora o xingamento fosse sincero, não
era de raiva, mas sim de preocupação. Ela havia se responsabilizado por aquele
jovem, muito jovem na opinião de todos, mas igualmente excepcional piloto, também
na opinião de todos.
Ela
chamou por Kroan, mas notou que sua voz saia rouca e fraca. Era o preço da
fumaça. Acionou alguns comandos no painel de seu comlink em seu assento e
escutou o som abafado e contínuo dos exaustores de emergência. Aproveitou e tentou fazer uma varredura rápida na nave mesmo com o sistema instável. Danos do trem de pouso frontal esquerdo.
Rompimento leve no casco do setor de armazenagem. Unidade de energia ok. Motor
de deriva ok. Computador meia boca, mas respondendo e mantendo o suporte de
vida. Eram boas notícias. Tirando sua cabeça, os danos foram poucos. Poderiam
ser reparados em algumas horas. Olhou de novo o mostrador. Escudos no mínimo.
Isso podia significar um impacto direto e possivelmente de fonte energética, o
que era curioso visto que as contramedidas defensivas e os sensores não
detectaram nada.
Tentou
o comunicador interno mais uma vez, mas sem sucesso. Alguns circuitos teriam de
ser trocados ou o sistema ICM reiniciado. Soltou o cinto e levantou com
cuidado, equilibrando o corpo para se ajustar ao piso inclinado. A cabine da
Icarus era aconchegante embora não fosse muito grande. Cabiam todos os cinco
tripulantes habituais embora tivessem apenas dois assentos - para o piloto e a
capitã.
Ela
olhou para o interior da nave tentando adaptar a visão à escuridão e fumaça,
que diminuía graças aos exaustores que estavam terminando seu trabalho, quando
percebeu uma forma humana alguns metros atrás, recostado à parede. Kroan.
Ele
não devia estar com seu cinto preso o suficiente e foi arremessado na
aterrissagem. Ela se moveu rapidamente até ele e postou-se ao seu lado. Apesar
do corte na testa o pulso dele era firme e a respiração estável e o melhor seria
deixá-lo descansar. Ela o acomodou com a cabeça apoiada em sua jaqueta e saiu à
procura de Nytta. Se ela bem se lembrava a amiga e segunda em comando estava em
sua cabine descansando quando tudo aconteceu.
A
nave não era das mais novas, era uma Exploradora já com alguns bons ciclos, mas
servia muito bem ao seu propósito e a capitã Huua a tinha quase como uma filha.
Uma cabine de comando frontal ligado a dois corredores que se uniam formando um
só a partir de uma área comum ladeado por cinco aposentos de cada lado, alguns
compartimentos e rampa de desembarque. Ou seja, não tinham muito onde procurar.
A
capitã deixou-se escorregar até a parede do corredor e avançou apoiada nela. A
cabine de Nytta era a terceira daquele lado. O corredor, fora alguns painéis do
teto caídos, estava intacto. Mais uma que ela deveria agradecer ao jovem
piloto. Ela parou à frente da porta da colega, mas permaneceu inerte. Faíscas
denunciavam um curto circuito.
“-
Nytta!” - a capitã gritou junto com duas pancadas secas na porta.
“-
Huua? Você está bem?” - respondeu uma voz abafada de trás da porta - “porta
emperrada… pode fazer algo?”
Ela
puxou algo como uma multiferramenta de seu cinto e com habilidade tirou o
painel de controle da porta. Um fio cortado depois e a porta estava abrindo.
As
duas se estudaram como que uma verificando a condição uma da outra e terminaram
em um abraço singelo.
“-
Achei que não fosse mais te ver” - disse Nytta mostrando-se surpreendentemente
frágil. Quase uma novidade para a capitã.
“-
Se escapamos com vida daquela confusão em Absalom, não iríamos morrer numa
quedinha dessas.”
“-
Pelo amor dos deuses… vocês não podem se ver que já começam com isso… procurem
um quarto e me deixem aqui sangrando até a morte” - praguejou Kroan recostado
na porta - “e de nada por ter salvo a vida de vocês!”
“-
Seu trabalho foi excelente Kroan, sem duvida” - disse a capitã enquanto o
apoiava pelo ombro - “vamos para área médica ver esse ferimento… Nytta,
verifique os sistemas e reinicie o ICM, depois tente contado com os outros e
veja quanto tempo eles levariam para chegar aqui. Quero saber quanto tempo
levaremos para sair dessa rocha miserável… e por sinal… descubra onde estamos!”
Nytta
de pronto pegou algumas coisas do chão de seu aposento e pôs nos bolsos e saiu
correndo em direção à cabine de comando.
…
Nytta
estava empenhada em colocar aquela lata velha, como ela gostava de chamar
apenas para irritar a capitã, para funcionar. Logo que chegou à cabine ela
tentou scannear a Icarus acionando alguns controles no assento de Huua. Nada.
Realmente o ICM teria de ser reiniciado para que todos os sistemas voltassem a
operar adequadamente. Ela não estava tranquila com isso. Ninguém estaria
tranquilo colocando a nave para dormir em um ambiente estranho, mesmo que por
alguns poucos minutos. Infelizmente o baque fora grande e essa era a saída mais
segura.
Ela
teclou alguns códigos e inseriu uma senha e após apertar o botão de confirmação
dois avisos sonoros tocaram e tudo apagou, de monitores às luzes. No mostrador
um timer esverdeado começou uma contagem regressiva de cinco minutos. Quase ao
mesmo tempo algumas luzes de emergência acenderam. O breu era ainda mais
assustador lá fora.
Na
enfermaria tudo apagou e Kroan fitou a capitã - “reinicialização do sistema” -
ele resmungou.
“-
Nytta está colocando tudo nos eixos… deve levar uns minutos” - completou a
capitã enquanto aplicava o último procedimento no garoto. “Agora me diga… o que
diabos aconteceu lá em cima?”
“-
Sei lá… num minuto estávamos papeando, no outro, do nada, surgiu algo como uma
projeção de energia. Parecia até uma erupção daquelas da lua de Altarun. O que
sei é que veio direto em nossa direção. Só tive tempo de direcionar todos os
escudos para a proa e girar a nave para escapar do impacto direto. Não
estivessem nossos escudos no máximo estaríamos torrados agora. De qualquer
forma o primeiro impacto foi o pior, acho que foi aí que tu apagou. Os sistemas
principais falharam e só tive o suficiente para fazer um pouso o menos fatal
possível. Esse banco de areia caiu bem a calhar. Quando batemos nele eu fui
jogado para trás. Acordei com o barulho dos amassos de vocês.”
Na
cabine Nytta mirava impaciente o timer. Quatro minutos.
A
capitã olhava para a escuridão pela escotilha da enfermeira. Não que
conseguisse enxergar algo lá fora, seus pensamentos estavam longe recapitulando
as informações de Kroan, lembranças, leituras, histórias. Sua cabeça funcionava
assim, com um velho computador.
“-
Nossas contramedidas não mostraram nada?”
“-
Nop!”
“-
E o radar?”
“-
Também não!”
“-
E os sensores estavam travados em inorgânicos, não é?”
“-
Essa não é uma zona de grandes ameaças orgânicas que consigam se mover no
vácuo… estávamos com cem por cento em inorgânicos caso alguma nave entregasse
em nosso radar mesmo com camuflagem.”
Nytta
não estava tranquila. Um formigamento na nuca, um arrepio no braço. Algo estava
errado. Três minutos.
A
testa de Huua estava franzida e Kroan já estiveram com ela o suficiente para
saber que aquilo não era bom sinal.
“-
Das duas uma. Ou nós descobrimos um novo tipo de vulcão ou…” - sua voz foi
diminuindo como se lembrasse de algo - “ou algo orgânico lançou aquilo em nós,
algo orgânico e grande o suficiente para quase nos atingir mesmo fora da
atmosfera e não ser detectado por nossos sensores.”
“-
Como é que é… um canhão de plasma de quatro patas que vai pastando e de
repentes arrota uma bomba. Impossível…”
“-
Existem criaturas de todo o tipo nesse maldito universo. Isso poderia muito bem
se chamar Mundos do Pacto com a Morte, pois sempre tem algo espreitando, pronto
para te jantar. E mesmo que não conhecêssemos a variedade é tão grande e inimaginável
que é mais fácil existir e apenas ignorarmos isso.”
Nytta
jurava que tinha visto algum movimento nas sombras. Era difícil ter certeza.
Mas sua mão já procurava a pistola reserva na lateral do assento. Dois minutos.
Huua
estava com Kroan na frente da sala de armas, onde deixam os armamentos mais
pesados. Estava tentando acionar manualmente a porta. Não queria esperar até o
ICM estar ativo de novo.
“-
Ainda acho que pode ser uma emboscada de piratas ou sei lá quem” - dizia Kroan
encostado ao lado da porta.
“-
É possível, mas pouco provável. Armas, mesmo pulsos de energia, têm assinatura.
Mesmo rápidos teríamos recebido algum aviso do sistema sobre um ataque no que
ele fosse disparado em nós ou mesmo antes, quando mirassem em nós. Ainda não
existem armas mais rápidas que a luz e isso nós daria tempo de sobra para um
procedimento evasivo.”
A
porta abriu a contragosto e com alguma força da capitã.
“-
Além disso, há alguns relatos de muito tempo atrás, em algumas luas ou planetas
do quadrante S6, não tenho certeza, sobre incidentes assim. Nada bom. Não
sobrou ninguém para falar além do que estava nos diários de bordo.”
Huua
pega dois pesados rifles e passa um terceiro para Kroan, pegando também alguns outros
brinquedinhos.
“-
QUANTO TEMPO?” - a capitã grita no corredor em direção à cabine de comando.
De
lá uma voz responde meio abafada pela distância - “um minuto… tem algo errado
lá fora!”
Huua
verificou sua arma mais uma vez enquanto contava os segundos mentalmente. Ela
aponta para Kroan levar um fuzil para Nytta, ordem que ele segue rapidamente.
40,
39, 38… - a imediata olhava ora para o timer no comlink, ora para a escuridão
do exterior.
De
um salto Kroan surgiu na porta iluminado por uma pequena lanterna acoplada em
seu ombro. O curativo na testa não ajudava muito e ele acabava com um aspecto
estranho. “- O que você viu?” – perguntou o garoto esticando o pescoço em
direção ao vidro.
“-
Não sei, pode ter sido apenas impressão minha…”
“-
Ela franziu a testa!” - ele disse e Nytta entendeu o recado.
25,
24, 23…
A
capitã estava verificando se alguns sistemas e circuitos estavam intactos para
ter certeza que tão logo o ICM estivesse reiniciado, tudo estaria em
funcionamento.
10,
9, 8…
“-
Vá com a capitã… eu termino aqui e me encontro com vocês lá atrás.”
3,
2, 1,… uma luz verde piscou duas vezes no mostrador e o sistema reiniciou. Sons
típicos de equipamentos eletrônicos surgiram primeiro na cabine e depois por
toda a nave, como se ela tivesse acordado de um longo sono. Todas as luzes
acenderam em dois ou três grupos até todo o corredor e ambientes estarem
iluminados. Nytta esperou alguns segundos e começou a apertar freneticamente
comandos no comlink pedindo vistorias e reparos automáticos de tudo o que
pudesse ser feito sem a presença de alguém.
Tão
logo Kroan alcançou a capitã, antes que pudesse fazer uma piada qualquer, o
silêncio foi cortado por sons mecânicos pesados seguidos do inconfundível
barulho de disparos. Huua levou um segundo para perceber que não eram contra a
nave, mas sim a arma pesada de proteção externa da rampa de embarque. Em
ambientes desconhecidos, e sem ordens em contrário, as armas estavam
configuradas para atirar primeiro e perguntar depois. Kroan se encolheu por
instinto destravando sua arma e apontando em direção à porta de desembarque.
Um
instante antes, na cabine, a última coisa que fora acionada foram os sensores. Como a nave
reconheceu que estavam em solo, automaticamente o sistema passou a scannear por formas
biológicas próximas… e ele fez seu serviço muito bem feito. Uma tela auxiliar
ligou à frente do assento da capitã ao mesmo tempo em que Nytta escutou os
disparos. Na tela, vários pontos luminosos piscavam, ao redor do que parecia
ser a o desenho da nave, mostrando posições em movimento. Muitas. Ao lado de
cada ponto se movimento a inscrição ‘Forma de Vida Desconhecida’.
Continue a leitura no:
Capítulo 2
Nota: Adoro inventar histórias e contos para os cenários que mais curto, e no momento Starfinder está no topo da lista. Todo o charme de seu cenário e de suas regras deixaram minha cabeça fervilhando. Não resisti em colocar no papel as histórias, que naturalmente se formaram, da tripulação da Icarus em sua jornada pelos Mundos do Pacto. Essas histórias servirão para ilustrar elementos e regras do jogo, demonstrar material criado (autoral, oficial ou de outros) e, quem sabe, incentivar que outros façam o mesmo. Espero que apreciem!
Um comentário:
Espero pelo proximo.
Uma pergunta, teria como ter adaptação de Mass Efect?
oborohagane@hotmail.com
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