Shadow
of the Beanstalk,
o RPG de Android: Netrunner
Todos sabem da paixão que tenho
pelo cardgame Android: Netrunner. Baseado em um jogo dos anos noventa criado
por Richard Garfield (criador de Magic: the gathering) que reproduz o embate
entre hackers e megacorporações, ele possuía um sensacional sistema de
desenvolvimento e resolução de problemas cativando os jogadores sem a incômoda
necessidade de colecionar e gastar um caminhão de dinheiro. Isso acabou por
fazê-lo ser aclamado como um dos melhores cardgames dos últimos anos.
Pertencente à Wizard of the Coast e cedido à Fantasy Flight para
comercialização, ele criou um novo cenário rico, instigante e popular.
A franquia Android contou com
boardgame, cardgame, livros e arregimentou uma legião de fãs mundo à fora ao
longo dos anos. Então a surpresa não foi pouca quando houve o anúncio da interrupção
de sua produção e venda após seis anos de sucesso por uma não renovação da
licença por parte da WotC à Fantasy Flight.
Isso era o fim? Não.
O universo criado em Android:
Netrunner se tornou maior que ele mesmo. Ele criou e ampliou uma verdadeira
cultura cyberpunk alicerçada por elementos do cardgame. Isso resultou em Shadow of the Beanstalk. Este é o
primeiro livro básico de RPG ambientado no cenário de Android, dando aos
jogadores a chance de viver aventuras no mundo real em um futuro próximo,
representado em todo o imaginário da franquia. De misteriosos assassinatos,
passando por lutas contra o sistema e culminando em embates virtuais na network
(a sua matrix), tudo isso se torna tema central nas aventuras e campanhas desse
novo título da Fantasy Flight.
O Cenário
Mas não imagine que é apenas
uma adaptação dos jogos da franquia para o mundo do RPG. Nos jogos anteriores da franquia nós
assumíamos o papel ou de executivos das grandes corporações tentando manter seu
trabalho em andamento ou de runners querendo derrubar essas grandes empresas.
Em Shadow of the Beanstalk temos uma experiência diferente. Em vez de homens poderosos
ou revolucionários do computador, ele coloca os jogadores no lugar de pessoas
normais (nos padrões do futuro) vivendo suas vidas dia após dia antes de serem atingidas
pela luta social em andamento, mostrando o lado mais sombrio e perigoso do
mundo da alta tecnologia. O próprio título do RPG - Beanstalk - faz referência
à sombra projetada pelo enorme elevador espacial que se estende da cidade de New
Angeles, na Terra, até a lua, na colônia Heinlein. O simbolismo nos mostra que
ninguém está à salvo da evolução científica e de seus resultados. A ‘sombra’
pode atingir todos de forma igual.
Shadow of the Beanstalk é um
cenário de alta tecnologia, mas não tão alta que pareça utópica. A tecnologia e
seus resultados podem ser vislumbrados para nosso futuro real, A realidade dos
dramas vividos está logo ali, depois daquela esquina. Em meio à isso temos a
Network, a nossa internet de hoje, com tudo o que consideramos perigoso e
depreciativo nela hoje, em tempos de smartphones. Como disse o desenvolvedor
Samuel Gregor-Stewart em uma entrevista à revista Tabletop Gaming: “Então, sim, Android é um ótimo cenário para
interpretar, porque parece selvagem e fantástico o suficiente para ser
interessante para jogar, mas tem aquele toque de familiaridade que permite que
os jogadores entrem direto sem precisar perguntar: ‘Espere, posso fazer isso nesse
cenário?’”
Como cenário Shadow of the
Beanstalk se concentra na cidade de New Angeles, apresentando todos os elementos
necessários para que aventuras e campanhas se desenrolem. Elementos que antes
estavam no jogo de tabuleiro foram re-projetados e ampliados. Muitos novos
detalhes foram dados à cidade para que ele ganhasse corpo e volume. Além disso,
cenários urbanos como esse necessitam de detalhes mais pormenorizados de zonas,
bairros, empresas, rotas e vias e funcionamento de instituições. Tudo isso está
pensando no livro. Saber onde andar com a arma destravada ou onde tomar cuidado
para não criar confusão pode salvar sua vida.
O Sistema
O mecânica utilizada por Shadow
of the Beanstalk é o Genesys System (2017), sistema própria da Fantasy Flight
para uso genérico e que se baseia em dados narrativos (narrative dice system). Todo
desafio que seu personagem tentar ultrapassar fará com que ele jogue alguma
combinação de dados de Habilidade e Dificuldade para determinar seu sucesso ou
não.
Os dados de Habilidade (d8) vêm
das perícias e características únicas do seu personagem e possuem símbolos de Sucesso e Vantagem. Os dados de dificuldade vêm da dificuldade da tarefa
que seu personagem está tentando realizar e possuem símbolos de Falha e Ameaça. Para ter sucesso em qualquer tarefa que seu personagem
esteja tentando realizar, um jogador simplesmente deve rolar mais símbolos de
Sucesso do que símbolos de Falha. E quanto aos símbolos de vantagem e ameaça? A
Vantagem serve para variar o grau de sucesso ou falha, gerando efeitos
colaterais positivos independente do resultado. Já a Ameaça significa um efeito
colateral negativo, independente do resultado.
Além disso, podemos incluir em
nosso conjunto de dados à serem lançados nos desafios dados de Proficiência e
Desafio (d12). Os dados de proficiência vêm também com símbolos de sucesso e
vantagem, além do símbolo de triunfo, que representa um enorme sucesso
colateral. De outro lado, os dados de Desafio, vêm com símbolo de falha e
ameaça, além do símbolo de Desespero, que representa um enorme efeito colateral
negativo. Por fim temos os dados Boost e Setback (d6), o primeiro com símbolos
de sucesso e vantagem e o segundo com símbolos de falha e ameaça. Tudo isso
gera resultado imprevisíveis. Dados com resultados iguais se anulam e
possibilitam um resultado final que deverá ser narrado/interpretado pelo
jogador. Resultado e narrativa andam de mãos juntas aqui.
Um ponto interessante que tem
relação aos dados e suas jogadas são os Story Points. A cada sessão, os
jogadores ganham Story Points igual ao número de jogadores e o Mestre recebe 1
story point. Os jogadores podem gastar esses pontos para atualizar os
dados (de Habilidade para Proficiência), para dificultar o teste de um
oponente, dificultar o teste de um inimigo, ativar habilidades especiais ou
permitir que sejam introduzidos pequenos fatos no mundo do jogo que beneficiam os
jogadores. No entanto, o Mestre também possui um conjunto de
possibilidades com seus story points e pode usá-los com efeitos poderosos no
cenário ou contra os jogadores. Cada vez que um lado usa um Story Point,
ele é transferido para o conjunto oposto. Fazer uso frequente desses
pontos, seja de um lado ou de outro, gera muitas possibilidades para o correr
das sessões. Não apenas os jogadores estão envolvidos em todas as suas jogadas,
mas também ajudam a criar tensão ao longo do jogo. Sensacional!
Os combates são bastante
simplistas, fazendo uso de faixas de alcance generalizadas em vez de medições
definidas. A regra de iniciativa permite rolar para o grupo e o próprio
grupo decidi quem deve agir primeiro, criando a possibilidade de decisões
táticas. O sistema também possui algumas regras de interação social bem
trabalhadas. Ele oferece mais peso ao sistema social linkado às variadas
formas de jogar os dados.
Como eu já disse, o Genesys
System foi concebido para ser genérico, o que significou que ele precisou de
algumas atualizações e modificações para ser utilizado em Shadow of the
Beanstalk. Além de todas as novas opções decorrentes de um cenário cyberpunk e
da sofisticada tecnologia oferecida, há algumas mudanças nas principais regras
da Genesys. O principal deles é a ação de hackear computadores. A invasão
de um sistema bem protegido não é resolvida com apenas um único lançamento, mas
com um processo que envolve combater as defesas e capturar dados onde você
puder. De muitas maneiras, isso funciona como um tipo de sistema de combate
secundário para o jogo e, assim como os membros mais práticos podem comprar
novas armas ou combater drogas, o runner de um grupo pode se equipar com todos
os tipos de tecnologia para facilitar seu trabalho.
Mas há um elemento ímpar nesse
cenário – a Network. Shadow of the Beanstalk não seria um verdadeiro jogo para
Android sem a presença da Network. O Genesys System já apresentava regras para
hackers, mas para termos uma real impressão de estarmos em Android, vivenciando
a experiência de infiltração virtual, e o confronto entre runner e megacorporações,
do Android: Netrunner, seus criadores tiveram que adaptar novas regras.
Usando como base os encontros
estruturados do Genesys System para permitir que os jogadores dividam ações
simultâneas em vários ambientes, e com sua representação mais imersiva de
hackers, o Shadow of the Beanstalk permite que os jogadores enfrentem seus
oponentes virtuais e do mundo real ao mesmo tempo. Esse sistema de ação universal define o ambiente para momentos
cinematográficos. Gregor-Stewart dá exemplos: “um runner pode estar invadindo um servidor megacorp na network,
enquanto seus companheiros avançam furtivamente sobre os guardas que patrulham
os corredores, talvez. Ou um membro da gangue pode estar correndo contra o
tempo tentando abrir uma porta selada enquanto o resto do grupo está envolvido
em um tiroteio contra ondas de forças de segurança, mesmo que estejam em locais
totalmente diferentes e distantes.”
A sinergia entre os tipos de
personagens e ação é um tempero para o jogo. Imaginem ter o runner trabalhando
ao lado do resto da equipe, abrindo portas e desativando as câmeras ao invadir
um laboratório fortemente armado, pode ser uma experiência emocionante ao
melhor estilo cyberpunk.
Os Personagens
Pensando em questão mecânica, a
base de criação do personagem segue a linha normal do Genesys System: inicialmente
escolhemos um background, seguido de uma espécie ou arquétipo, carreira,
perícia, talentos específicos, terminando com facções e favors. O que temos de
diferente em Shadow of the Beanstalk são as opções apresentadas para
condizerem com o tipo e natureza de cenário, com pequenas modificações
mecânicas. Todas essas escolhas interagirão com 6 atributos básicos - Brawn,
Agility, Intellect, Cunning, Willpower e Presence – que juntos comporão o conjunto
de dados para resolver as ações pretendidas. Backgrounds fornecem também um ponto importante em um cenário
cyberpunk, pois estabelecem o posicionamento exato do personagem dentro do
cenário e como ele interage com seus principais elementos.
Os arquétipos funcionam como raça e definem que é o seu personagem no
mundo. Temos seis opções: Natural, um humano básico; Bioroid, que é mais
semelhante ao que seria chamado de Android (forma de vida artificial e
inorgânica); o Clone, uma forma de vida orgânica e artificial; o Cyborg, que
são humanos modificados; os G-Mods, que são humanos geneticamente melhorados; e
os Loonies, que são humanos que cresceram na lua e são adaptados para ambientes
de baixa gravidade. Como é de se esperar cada modifica seus atributos
iniciais e limites de dano, entre outras coisas.
As carreiras servem para definir o que seu personagem faz no mundo de
Android. Elas foram atualizadas para um cenário deste tipo e quem já jogou os
cardgames ou o boardgame verão muitos elementos conhecidos. As carreias
possíveis são: Acadêmico, Caçador de Recompensas, Artistas, Mensageiros,
Investigador, Ristie (herdeiros ricos de grandes corporações), Roughneck
(trabalhadores espaciais), Runner (nossos amados hackers), Soldados e Techs.
As facções
são um ponto interessante e importante da construção de personagens. Elas
funcionam como motivação para a ação do personagem no cenário e frente os
acontecimentos. Cada facção tem um conjunto de favors, divididos em Pequenos,
Regulares e Grandes, que influenciarão ganho, ações e opções.
A Aventura
A natureza realista dos
personagens dos jogadores e seu envolvimento nas maquinações do mundo cyberpunk
significa que Shadow of the Beanstalk é uma aventura mais pessoal e íntima do
que as grandes histórias de Netrunner e os outros jogos para Android. Não
esperemos aventuras do tipo destruir as ações do Consórcio Weyland ou falir a
corporação Jinteki. Mas não significa que eles não possam ser uma peça em um grande
esquema que tenham essas metas.
E isso será desenvolvido em
meio à muita interação. No livro há mais de 70 NPCs prontos para o mestre usar
e abusar, incluindo muitos dos personagens introduzidos no cenário na história
do cenário nesses anos de cardgame. Como diz Gregor-Stewart: “Um elemento divertido é que, embora tenhamos
um extenso capítulo de adversários e aliados que podem enriquecer seu jogo,
também temos perfis de alguns dos principais personagens que foram introduzidos
no cenário ao longo dos anos. Eles
variam de alguns dos personagens originais do jogo de tabuleiro, como Rachel
Beckmann e Caprice Nisei, a adições populares ao jogo de cartas, como Kati
Jones.”
Quanto às aventuras em si, há uma
seção dedicada ao Mestre com conselhos de como construir e conduzir aventuras
dessa natureza. Interessantes conselhos são dados sobre como trabalhar com
ficção científica e a execução de jogos com diferentes estratos sociais Temos
dicas sobre a construção de sociais já que são parte importante do cenário. No Adventure
Builder há 7 ganchos, cada um com um objetivo principal, alguns desafios e uma
reviravolta. Cada um desses ganchos forneceria, dependendo de quantos
desafios você vencer, uma a duas sessões de jogo, e eles servem como bons
exemplos de como estruturar uma aventura de ficção científica/Cyberpunk. Esse
Adventure Builder também fornece alguma inspiração para pegar esses ganchos e
expandi-los, primeiro por meio de escaladas e depois por clímax. Existem
cinco escaladas e clímax, e ambos servem para tornar a aventura muito mais
complicada. Embora o Adventure Builder ainda seja principalmente baseado
em narrativas, ele fornece estrutura para o design de aventura e isso o torna
bastante útil.
Ele Não Morreu
Embora eu e muitos outros
lamentem a descontinuidade de Android: Netrunner, podemos dizer de forma
contundente que ele não morreu. Seu cenário, suas histórias, suas aventuras e
emoções estão vivos em que Shadow of the Beanstalk. Um RPG que pode ser
diferente ao que estamos acostumados em termos de cyberpunk devido ao seu
cenário pré-existente, mas que carrega todo o espírito que tanto adoramos nesse
tipo de ambiente. Aliado à isso temos a possibilidade de nos aventurarmos em
redes de computadores e enfrentarmos megacoporações em aventuras narrativas,
fugindo do mainstream dos sistemas e cenários cyberpunk mais cultuados e
jogados. Se você tiver a oportunidade de jogar que Shadow of the Beanstalk, não
pense duas vezes e experimente-o. Valerá cada sessão!
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