O RPG no Japão
Eu
tenho uma constante curiosidade de como é a prática e produção do RPG fora do
eixo que mais temos contato – o ocidente, considerando-se o oeste da Europa e
as Américas. Já tive algumas conversas sobre como é a produção em lugares como
Filipinas e Rússia e até já postei alguma coisa aqui no blog ao longo dos
últimos doze anos, mas saber mais sobre a prática no Japão sempre me
interessou. Então descobri um pequeno artigo da Di, do GnomeStew, além de
outros debates em fóruns, sobre peculiaridades do RPG no Japão e resolvi trazer
para cá.
Normalmente
os RPGs japoneses (lançados no Japão, com desenvolvimento japonês e para
público japonês) os quais temos contato são alguns poucos que foram traduzidos
para o inglês e que só depois chegam por aqui. São produções como Maid RPG,
Golden Sky Stories, Ryuutama, Double Cross, Tenra Bansho Zero, Kamigakari: God
Hunters e o recém-lançado Shinobigami. Desses os únicos que realmente tive
contato foi o Ryuutama e Shinobigami (sobre o qual já postei uma resenha - LINK).
Vamos
acompanhar os dez pontos interessantes levantados sobre os RPGs japoneses.
1. ‘Tabletalk’ não ‘Tabletop’
Os
jogos de RPG - com caneta e papel - são chamados de Tabletalk no Japão
(abreviado como TRPG para Tabletalk RPG). Aparentemente uma alusão à forma
de jogar com pessoas sentadas ao redor de uma mesa como se fosse uma conversa. Uma
clara forma de diferenciar dos RPGs de videogames, uma febre em terras
japonesas. O começo do RPG no Japão foi tardio visto que os títulos chegavam
por lá em inglês. Os primeiros títulos traduzidos começaram a chegar no meio
dos anos oitenta com Classic Traveler (1984) e D&D (1985). Antes disso, os
primeiros RPGs japoneses haviam começado a ser publicados com foco em ficção
científica com Donkey Command e Enterprise: Role Play Game in Star Trek.
2. Call of Cthulhu é o TRPG mais
popular no Japão
Eu
já tinha escutado algo do tipo, mas com o artigo da Di eu tive a confirmação.
Japoneses são fascinados por TRPGs com temática Cthulhesca. Quem acompanha um
pouco da cultura japonesas, ou seus mitos, sabe de sua ligação com o
sobrenatural. Não são poucos os mangás ou animes que tem o elemento do terror
sobrenatural como temática. Uma passeada pela Amazon japonesas usando Call of
Cthulhu como palavra de pesquisa nos leva à nada menos que 54 títulos
diferentes de Call of Cthulhu lançados lá. É fácil compreender essa fascinação.
Pelo que pesquisei o maior público dessa temática para RPGs se dá entre o
público feminino.
3. Os JTRPGs são tipicamente do
tamanho de mangás
Enquanto
no ocidente estamos acostumados (e quase exigimos) formatos grandes com capas
duras, a grande maioria dos RPGs japoneses nos últimos tempos tem as dimensões
de mangás (18cmX12cm) necessitando muito mais páginas (normalmente de 400 a
500). Em princípio essa escolha de tamanho é por uma questão de facilidade de
armazenamento, mas principalmente por uma questão de costume editorial
japoneses. Além disso, muitos desses livros básicos e suplementos de RPGs
japoneses possuem grande espaço para mangás propriamente ditos como parte de
sua estrutura de texto.
4. ‘Replays’ são uma forma
importante de conteúdo TRPG
Os
‘replays’ são registros lidos do tudo o que aconteceu em uma sessão ou
campanha. O conhecido Record of Lodoss War é um replay real de uma
campanha de Dungeons & Dragons, e o anime Chaos Dragon foi um replay de
anime de uma campanha realizada em Red Dragon (outro JTRPG). Eles podem
ser usados não apenas
como uma transcrição de uma sessão de jogo, mas também como uma ferramenta de
aprendizado sobre como os jogos são realmente jogados já que inclusive eles
narram a regra jogada e sua aplicação. Pense em pegar as seções de seu RPG
favorito e transformá-lo em uma série de livros ou audiobooks. Os replays são
bastante populares (mais populares até que romances oficiais de franquias de
RPG) e muitas vezes confundidos com romances leves e outros livros desse tipo. Muitos
desses Replays - principalmente os ligados à editoras - inclusive eram lançados
junto com os livros básicos (ainda antes de qualquer suplemento) para servir
como apoio ao lançamento do jogo, quase sempre com um designer famoso como
participante.
5. Os JTRPGs podem ser muito baratos
Quanto
custa a sua cópia impressa de Dungeons & Dragons, Pathfinder ou
Genesys? Mais de US$ 50? E se eu lhe dissesse no Japão, devido ao
foco em livros em preto e branco e de tamanho menor, muitos desses JRPGs custam
aproximadamente o preço de um mangá? Combine isso com os Replays em forma
de Romances pelo mesmo preço e você terá um local em que poderá ir a uma loja
de jogos e escolher facilmente a edição mais recente daquele jogo que você
adora, sem prejudicar suas economias. Muitos RPGs mais populares do Japão
seguem isso, embora haja uma tendência de mudança em direção a livros maiores e
de maior qualidade. Sim, ainda existem mais opções premium de capa dura e têm
preços semelhantes aos em todo o mundo, há apenas um número decente de RPGs de
baixo custo flutuando para acompanhar sua rotina diária.
6. Falta de PDFs
Como
o Japão tem um foco pesado em RPGs razoavelmente baratos e acessíveis, muitos acabam
não sendo transformados em PDFs. Essa peculiaridade é ampliada pelo fato de a
maioria das grandes editoras do Japão estar absolutamente aterrorizada com a
pirataria digital. Na verdade, isso torna a tradução de RPGs japoneses
mais difícil para os falantes de inglês, tanto em capacidade oficial quanto não
oficial, pois o primeiro passo para traduzir um jogo (provavelmente
ilegalmente) é encontrar uma pessoa japonesa disposta a fotocopiar todas as
páginas para você. Embora haja alguns editores que se mudaram para se
abrir para a distribuição digital nos últimos anos, ainda há muitos
problemas em fornecê-los; aqueles que frequentemente acabam vendendo
cópias digitais pelo preço exato das físicas também.
7. One-shots reinam supremos
O
Japão tem uma cultura centrada no trabalho muito forte. Por esse motivo, o
tempo livre é bastante limitado e possivelmente difícil de definir em horários
regulares. Isso criou uma cultura de jogabilidade focada em one-shots,
onde os jogadores geralmente trazem seus próprios personagens de todo o lugar
para trabalharem juntos. Enquanto muitos jogadores tendem a se concentrar
muito na composição dos grupos e na coesão da campanha, normalmente você
encontra um Call of Cthulhu japonês com um elenco misto de detetives
fervorosos, espadachim exagerado e garotas mágicas no mesmo grupo. Muitos jogos
- Double Cross definitivamente me vêm à mente - até têm mecânicas focadas em
elevar rapidamente o nível dos jogadores sobre os personagens. Isso
permite que os personagens morram mais livremente, apenas para que seus
jogadores tragam novos personagens na semana seguinte.
8. Os 3 grandes jogos de fantasia
Além
de Call of Cthulhu, existem três grandes jogos de fantasia disputando o 2º
lugar. Enquanto Pathfinder e D&D 5e não surpreendem ninguém -
especialmente considerando sua onipresença em todo o mundo - o Japão também tem
o Sword World RPG, atualmente na 2.5ed. Os três estão constantemente em
concorrência igual, o que impediu o D&D 5e de dominar o mercado japonês, como
aparentemente em todo o mundo.
9. Tantos, tantos poderes
Dos
livros que pude examinar, parece que muitos JTRPGs como Tenra Bansho Zero,
Double Cross, Shinobigami - assim como o que me disseram sobre jogos como Log
Horizon, Konosuba, Arianrhod e Sword World são - há um forte foco nas escolhas
abertas de poder/habilidade. Quase todo talento ou poder que seu
personagem possui é escolhido de uma lista enorme, para que cada personagem
pareça renovado e exclusivamente seu. Embora os sistemas baseados em classe
definitivamente tenham poderes exclusivos para escolher entre eles, as listas
por trás de cada um são grandes o suficiente para que você não veja o fim das
opções. Associe isso a muitos sistemas de mesa com uma grande lista de poderes
universais ou mecânicas muito abertas de classes ou classes múltiplas e você
tem um personagem que, no final das contas, é limitado apenas pelo que você
escolhe para ele.
10. Construção autoral e
jogabilidade baseada em cenas
Quando
se trata de RPGs de mesa no ocidente, geralmente há um grande foco na discussão
entre jogos em sandbox e campanhas construídas. Existe até um grande
número de campanhas construídas que se enquadram em grandes sandbox onde os
jogadores são livres para fazer o que quiserem (Curse of Strahd ou Storm King's
Thunder). Embora a discussão definitivamente exista no Japão -
simplesmente devido a jogos ocidentais como Pathfinder, D&D e Call of
Cthulhu serem tão predominantes - a verdade é que um grande número de jogos tem
narrativas construídas muito fortes.
Double
Cross, Tenra Bansho Zero e Shinobigami têm um foco poderoso nos jogos que são
abordados em “Atos”, “Fases” ou “Cenas”, que apresentam apenas 1 ou 2
jogadores em cada cena. Existe até um grande número de poderes em seus
vários jogos que funcionam apenas em cenas específicas, como a “Introdução”, em
que cada jogador revela dramaticamente seu personagem ao grupo ou um punhado de
“Fases principais”, onde a aventura guiada pela trama acontece entre cada
personagem. Essas fases, em particular, tendem a ter, na melhor das
hipóteses, pequenos conflitos e confrontos em que, mesmo com 1 dano, você fica
completamente fora de cena. Muitos desses jogos também têm uma “Fase
Climax”, que é tipicamente uma grande luta envolvendo todos os jogadores contra
o antagonista da aventura em um pesado encontro com o chefe.
Esse
tipo de foco nas cenas lembra muito a televisão, filmes e (é claro) animes. Todo
encontro parece agir como veículo da narrativa, mas com todos os pedaços extras
cortados. As sessões são incrivelmente rápidas e as aventuras em grande
escala podem ser exploradas e realizadas em apenas 1-2 sessões.
Isso
nos leva à uma característica japonesas. Quase não se vê jogos focados em
narrativas (como Apocalypse World ou FATE). Esses jogos tendem a se
concentrar fortemente em colocar o envolvimento narrativo na vanguarda do
jogo. Essa jogabilidade narrativista é tecida na criação de personagens,
desde seus Aspectos básicos até os movimentos que você faz no jogo. No
entanto, ao mesmo tempo, os RPGs do Japão têm pouco ou nenhum foco em nenhuma
mecânica narrativa, optando muitas vezes por muitos dos jogos para se
concentrar totalmente no combate ou no que seu personagem pode realmente
fazer. É o mundo perfeito para os jogadores que preferem ação, mas alcança
uma forte coesão narrativa, apesar de nenhuma de suas mecânicas suportar um
estilo de jogo focado na narrativa. Tudo devido ao foco na jogabilidade baseada
em cenas.
Bom
jogos!
2 comentários:
Gostei muito do artigo. É bem interessante como a cultura de leitura local influencia o modo como o jogo é lançado. Principalmente como quadrinhos são lançados, no Brasil estamos cada vez mais com a cultura de edições de luxo, o que reflete diretamente na forma como os RPG são lançados por aqui. Existe algum material sobre como os países da America do Sul lançam juegos de roll?
Importante ressaltar que muito da acessibilidade dos RPGs de baixo custo se deve ao sistema de distribuição japonês. QUe é meio impraticavel no BRasil. Hoje um mangá de 200 paginas é vendido a 30 reais, um RPG de 400-500 paginas em formato mangá (como os japoneses) ainda custaria uns 70-80 reais. É bem complicado pensar num modelo alternativo que permita esse tipo de circulação de baixo custo.
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