domingo, 24 de maio de 2020

O RPG no Japão



O RPG no Japão

Eu tenho uma constante curiosidade de como é a prática e produção do RPG fora do eixo que mais temos contato – o ocidente, considerando-se o oeste da Europa e as Américas. Já tive algumas conversas sobre como é a produção em lugares como Filipinas e Rússia e até já postei alguma coisa aqui no blog ao longo dos últimos doze anos, mas saber mais sobre a prática no Japão sempre me interessou. Então descobri um pequeno artigo da Di, do GnomeStew, além de outros debates em fóruns, sobre peculiaridades do RPG no Japão e resolvi trazer para cá.

Normalmente os RPGs japoneses (lançados no Japão, com desenvolvimento japonês e para público japonês) os quais temos contato são alguns poucos que foram traduzidos para o inglês e que só depois chegam por aqui. São produções como Maid RPG, Golden Sky Stories, Ryuutama, Double Cross, Tenra Bansho Zero, Kamigakari: God Hunters e o recém-lançado Shinobigami. Desses os únicos que realmente tive contato foi o Ryuutama e Shinobigami (sobre o qual já postei uma resenha - LINK).

Vamos acompanhar os dez pontos interessantes levantados sobre os RPGs japoneses.


1. ‘Tabletalk’ não ‘Tabletop’
Os jogos de RPG - com caneta e papel - são chamados de Tabletalk no Japão (abreviado como TRPG para Tabletalk RPG). Aparentemente uma alusão à forma de jogar com pessoas sentadas ao redor de uma mesa como se fosse uma conversa. Uma clara forma de diferenciar dos RPGs de videogames, uma febre em terras japonesas. O começo do RPG no Japão foi tardio visto que os títulos chegavam por lá em inglês. Os primeiros títulos traduzidos começaram a chegar no meio dos anos oitenta com Classic Traveler (1984) e D&D (1985). Antes disso, os primeiros RPGs japoneses haviam começado a ser publicados com foco em ficção científica com Donkey Command e Enterprise: Role Play Game in Star Trek.

2. Call of Cthulhu é o TRPG mais popular no Japão
Eu já tinha escutado algo do tipo, mas com o artigo da Di eu tive a confirmação. Japoneses são fascinados por TRPGs com temática Cthulhesca. Quem acompanha um pouco da cultura japonesas, ou seus mitos, sabe de sua ligação com o sobrenatural. Não são poucos os mangás ou animes que tem o elemento do terror sobrenatural como temática. Uma passeada pela Amazon japonesas usando Call of Cthulhu como palavra de pesquisa nos leva à nada menos que 54 títulos diferentes de Call of Cthulhu lançados lá. É fácil compreender essa fascinação. Pelo que pesquisei o maior público dessa temática para RPGs se dá entre o público feminino.





3. Os JTRPGs são tipicamente do tamanho de mangás
Enquanto no ocidente estamos acostumados (e quase exigimos) formatos grandes com capas duras, a grande maioria dos RPGs japoneses nos últimos tempos tem as dimensões de mangás (18cmX12cm) necessitando muito mais páginas (normalmente de 400 a 500). Em princípio essa escolha de tamanho é por uma questão de facilidade de armazenamento, mas principalmente por uma questão de costume editorial japoneses. Além disso, muitos desses livros básicos e suplementos de RPGs japoneses possuem grande espaço para mangás propriamente ditos como parte de sua estrutura de texto.



4. ‘Replays’ são uma forma importante de conteúdo TRPG
Os ‘replays’ são registros lidos do tudo o que aconteceu em uma sessão ou campanha. O conhecido Record of Lodoss War é um replay real de uma campanha de Dungeons & Dragons, e o anime Chaos Dragon foi um replay de anime de uma campanha realizada em Red Dragon (outro JTRPG). Eles podem ser usados ​​não apenas como uma transcrição de uma sessão de jogo, mas também como uma ferramenta de aprendizado sobre como os jogos são realmente jogados já que inclusive eles narram a regra jogada e sua aplicação. Pense em pegar as seções de seu RPG favorito e transformá-lo em uma série de livros ou audiobooks. Os replays são bastante populares (mais populares até que romances oficiais de franquias de RPG) e muitas vezes confundidos com romances leves e outros livros desse tipo. Muitos desses Replays - principalmente os ligados à editoras - inclusive eram lançados junto com os livros básicos (ainda antes de qualquer suplemento) para servir como apoio ao lançamento do jogo, quase sempre com um designer famoso como participante.

5. Os JTRPGs podem ser muito baratos
Quanto custa a sua cópia impressa de Dungeons & Dragons, Pathfinder ou Genesys? Mais de US$ 50? E se eu lhe dissesse no Japão, devido ao foco em livros em preto e branco e de tamanho menor, muitos desses JRPGs custam aproximadamente o preço de um mangá? Combine isso com os Replays em forma de Romances pelo mesmo preço e você terá um local em que poderá ir a uma loja de jogos e escolher facilmente a edição mais recente daquele jogo que você adora, sem prejudicar suas economias. Muitos RPGs mais populares do Japão seguem isso, embora haja uma tendência de mudança em direção a livros maiores e de maior qualidade. Sim, ainda existem mais opções premium de capa dura e têm preços semelhantes aos em todo o mundo, há apenas um número decente de RPGs de baixo custo flutuando para acompanhar sua rotina diária.

6. Falta de PDFs
Como o Japão tem um foco pesado em RPGs razoavelmente baratos e acessíveis, muitos acabam não sendo transformados em PDFs. Essa peculiaridade é ampliada pelo fato de a maioria das grandes editoras do Japão estar absolutamente aterrorizada com a pirataria digital. Na verdade, isso torna a tradução de RPGs japoneses mais difícil para os falantes de inglês, tanto em capacidade oficial quanto não oficial, pois o primeiro passo para traduzir um jogo (provavelmente ilegalmente) é encontrar uma pessoa japonesa disposta a fotocopiar todas as páginas para você. Embora haja alguns editores que se mudaram para se abrir para a distribuição digital nos últimos anos, ainda há muitos problemas em fornecê-los; aqueles que frequentemente acabam vendendo cópias digitais pelo preço exato das físicas também.



7. One-shots reinam supremos
O Japão tem uma cultura centrada no trabalho muito forte. Por esse motivo, o tempo livre é bastante limitado e possivelmente difícil de definir em horários regulares. Isso criou uma cultura de jogabilidade focada em one-shots, onde os jogadores geralmente trazem seus próprios personagens de todo o lugar para trabalharem juntos. Enquanto muitos jogadores tendem a se concentrar muito na composição dos grupos e na coesão da campanha, normalmente você encontra um Call of Cthulhu japonês com um elenco misto de detetives fervorosos, espadachim exagerado e garotas mágicas no mesmo grupo. Muitos jogos - Double Cross definitivamente me vêm à mente - até têm mecânicas focadas em elevar rapidamente o nível dos jogadores sobre os personagens. Isso permite que os personagens morram mais livremente, apenas para que seus jogadores tragam novos personagens na semana seguinte.

8. Os 3 grandes jogos de fantasia
Além de Call of Cthulhu, existem três grandes jogos de fantasia disputando o 2º lugar. Enquanto Pathfinder e D&D 5e não surpreendem ninguém - especialmente considerando sua onipresença em todo o mundo - o Japão também tem o Sword World RPG, atualmente na 2.5ed. Os três estão constantemente em concorrência igual, o que impediu o D&D 5e de dominar o mercado japonês, como aparentemente em todo o mundo.

9. Tantos, tantos poderes
Dos livros que pude examinar, parece que muitos JTRPGs como Tenra Bansho Zero, Double Cross, Shinobigami - assim como o que me disseram sobre jogos como Log Horizon, Konosuba, Arianrhod e Sword World são - há um forte foco nas escolhas abertas de poder/habilidade. Quase todo talento ou poder que seu personagem possui é escolhido de uma lista enorme, para que cada personagem pareça renovado e exclusivamente seu. Embora os sistemas baseados em classe definitivamente tenham poderes exclusivos para escolher entre eles, as listas por trás de cada um são grandes o suficiente para que você não veja o fim das opções. Associe isso a muitos sistemas de mesa com uma grande lista de poderes universais ou mecânicas muito abertas de classes ou classes múltiplas e você tem um personagem que, no final das contas, é limitado apenas pelo que você escolhe para ele.



10. Construção autoral e jogabilidade baseada em cenas
Quando se trata de RPGs de mesa no ocidente, geralmente há um grande foco na discussão entre jogos em sandbox e campanhas construídas. Existe até um grande número de campanhas construídas que se enquadram em grandes sandbox onde os jogadores são livres para fazer o que quiserem (Curse of Strahd ou Storm King's Thunder). Embora a discussão definitivamente exista no Japão - simplesmente devido a jogos ocidentais como Pathfinder, D&D e Call of Cthulhu serem tão predominantes - a verdade é que um grande número de jogos tem narrativas construídas muito fortes.

Double Cross, Tenra Bansho Zero e Shinobigami têm um foco poderoso nos jogos que são abordados em “Atos”, “Fases” ou “Cenas”, que apresentam apenas 1 ou 2 jogadores em cada cena. Existe até um grande número de poderes em seus vários jogos que funcionam apenas em cenas específicas, como a “Introdução”, em que cada jogador revela dramaticamente seu personagem ao grupo ou um punhado de “Fases principais”, onde a aventura guiada pela trama acontece entre cada personagem. Essas fases, em particular, tendem a ter, na melhor das hipóteses, pequenos conflitos e confrontos em que, mesmo com 1 dano, você fica completamente fora de cena. Muitos desses jogos também têm uma “Fase Climax”, que é tipicamente uma grande luta envolvendo todos os jogadores contra o antagonista da aventura em um pesado encontro com o chefe.

Esse tipo de foco nas cenas lembra muito a televisão, filmes e (é claro) animes. Todo encontro parece agir como veículo da narrativa, mas com todos os pedaços extras cortados. As sessões são incrivelmente rápidas e as aventuras em grande escala podem ser exploradas e realizadas em apenas 1-2 sessões.

Isso nos leva à uma característica japonesas. Quase não se vê jogos focados em narrativas (como Apocalypse World ou FATE). Esses jogos tendem a se concentrar fortemente em colocar o envolvimento narrativo na vanguarda do jogo. Essa jogabilidade narrativista é tecida na criação de personagens, desde seus Aspectos básicos até os movimentos que você faz no jogo. No entanto, ao mesmo tempo, os RPGs do Japão têm pouco ou nenhum foco em nenhuma mecânica narrativa, optando muitas vezes por muitos dos jogos para se concentrar totalmente no combate ou no que seu personagem pode realmente fazer. É o mundo perfeito para os jogadores que preferem ação, mas alcança uma forte coesão narrativa, apesar de nenhuma de suas mecânicas suportar um estilo de jogo focado na narrativa. Tudo devido ao foco na jogabilidade baseada em cenas.

Bom jogos!


2 comentários:

Max Santiago disse...

Gostei muito do artigo. É bem interessante como a cultura de leitura local influencia o modo como o jogo é lançado. Principalmente como quadrinhos são lançados, no Brasil estamos cada vez mais com a cultura de edições de luxo, o que reflete diretamente na forma como os RPG são lançados por aqui. Existe algum material sobre como os países da America do Sul lançam juegos de roll?

OD disse...

Importante ressaltar que muito da acessibilidade dos RPGs de baixo custo se deve ao sistema de distribuição japonês. QUe é meio impraticavel no BRasil. Hoje um mangá de 200 paginas é vendido a 30 reais, um RPG de 400-500 paginas em formato mangá (como os japoneses) ainda custaria uns 70-80 reais. É bem complicado pensar num modelo alternativo que permita esse tipo de circulação de baixo custo.