quinta-feira, 16 de junho de 2022

Pânico Satanista e o RPG - um pouco da história do ódio ao D&D

  
Pânico Satanista e o RPG
- um pouco da história do ódio ao RPG -

 
Não é nenhuma novidade, pelo menos entre os rpgistas mais antigos, que RPG foi associado à ações perigosas e pessoas de caráter satanista. Sério. O que temos retratado na última temporada de Stranger Things (Netflix) é apenas o cotidiano daqueles que jogavam RPG nos anos oitenta. Ser taxado de estranho, receber olhares atravessados de pessoas da família ou se escanteado na escola, tudo isso era o dia a dia de quem praticava RPG, como se ao invés disso estivéssemos sacrificando virgens para alguma entidade demoníaca milenar.

Saindo das piadas, os anos oitenta tiveram sua carga de perseguição sem sentido à prática do RPG nos Estados Unidos principalmente (principalmente à D&D) e depois migrando para o Brasil (mais para os anos noventa e mais centrado à títulos de Vampiro: a Máscara).

O Pânico Satânico, como muitos chamavam, que é retratado no primeiro episódio do seriado da Netflix, temos o personagem Eddie, o líder do Hellfire Club (o grupo de jogadores de D&D ao qual os protagonistas se juntam), zomba de um artigo da Newsweek que mostra jogadores de D&D como adoradores de Satanás. O artigo diz “O diabo veio para a América”, e continua dizendo: “Estudos ligaram o comportamento violento ao jogo, alegando que promove adoração satânica, sacrifício ritual, sodomia, suicídio e até assassinato”. Mais tarde, quando o mesmo personagem é acusado de cometer assassinatos hediondos, algumas pessoas que estão tentando encontrá-lo e linchá-lo comentam: “Ouvi dizer que o jogo transforma quem o joga em satanistas”.

Pode parecer algo exagerado ou piada, mas esse era o dia a dia de muitos jogadores e apreciadores de RPG naqueles tempos.

Em vários momentos de sua história e vida editorial, Dungeons & Dragons recebeu publicidade negativa por uma suposta promoção de satanismo, feitiçaria, suicídio, pornografia e assassinato. O pânico moral, que atingiu o pico na década de 1980, se espalhou entre muitas pessoas ao incutir o pensamento de que o mal pode ameaçar o bem-estar da sociedade por meio de D&D. Um medo generalizado que finalmente mostrou real redução apenas recentemente, apenas em 2016, segundo uma pesquisa apresentada em uma reportagem do jornal americano New York Times (When Dungeons & Dragons set off a ‘Moral Panic’).

Stranger Things nos rememora o chamado “Pânico Satânico” de Dungeons & Dragons, um momento da história da década de 1980 (quando houve o pico desse sentimento) em que o RPG mais famoso do mundo era o centro das atenções de todos, até chegar ao Governo dos Estados Unidos. D&D ganhou fama depois que James Dallas Egbert III, um estudante de 16 anos da Michigan State University, foi dado como desaparecido e dado como morto em 1979. O fato de ser descoberto posteriormente que o jovem havia fugido para a Louisiana devido à uma depressão grave e tentado se matar por mais de uma vez não impediu o público de pensar que James havia enlouquecido por causa de Dungeons & Dragons. O jovem acabou tirando sua própria vida em 1980.

A ideia de que o jogo poderia distorcer a mente dos jovens logo se tornou a causa favorita de luta dos cristãos fundamentalistas dos Estados Unidos. Certamente não ajudou nem um pouco, do ponto de vista deles, as capas dos manuais que retratavam rostos demoníacos e todas aquelas esquisitices que sempre gostamos, mas que não se aproximam dos valores cristãos. Após este episódio a verdadeira cruzada contra D&D começou.

A história por detrás do que é mostrado em Stranger Things e do Pânico Satânico é inspirada em uma história real. A cidade de Hawkins (no seriado) é substituída pela cidade de Heber City, uma cidade em Utah onde um clube de D&D do ensino médio foi invadido em 1980. Um pequeno grupo de pais atacou o clube, “preocupado” com as referências satânicas e antirreligiosas que continham no jogo.

Nesse mesmo período também foi lançado o manual Divindades & Semideuses, dedicado aos deuses do mundo dos jogos, cujo conteúdo ajudou a inflamar a ira dos pais fundamentalistas. Frases como “servir uma divindade é uma parte significativa do D&D e todos os personagens dos jogadores devem ter um deus patrono” certamente não ajudaram a acalmar as águas. Além disso, os pais também se agarraram a outra frase do Guia do Mestre – “Independentemente de o personagem professar ativamente alguma divindade, ele terá uma tendência e servirá à uma ou mais divindades dessa tendência geral indiretamente e sem o conhecimento do personagem”. Este passo foi, de acordo com os críticos de Dungeons & Dragons, uma espécie de mecanismo de chamariz para os jogadores mais jovens: as crianças foram informadas de que tudo era apenas um jogo, mas sem que elas soubessem que estavam servindo a forças sinistras. Essa era a desculpa que eles queriam para partir definitivamente para o ataque.

A cruzada contra o D&D começou em todos os Estados Unidos, com o mesmo objetivo: afastar as crianças de um jogo satânico. Pais, igrejas e comunidades católicas e imprensa aproveitaram a oportunidade para alimentar os leitores com manchetes sensacionalistas e instigadoras. Grupos de jogos, clubes e jogadores de todos os estados foram visados, colocados no centro das histórias relacionadas ao satanismo e cultos. No verão de 1982, o jogo foi banido dos distritos escolares de Oklahoma devido à sua “natureza satânica”. 

Em 1984 as coisas ficaram ainda piores. No final de 1984, Patricia Pulling de Richmond, Virgínia, tentou processar a editora de TSR e Gary Gygax, o co-criador de D&D, depois que seu filho de 16 anos, Irving “Bink” Pulling II, tirou a própria vida. Ela acreditava que isso era resultado dele ter sido “amaldiçoado” por um colega jogador de D&D. Para Pulling, o jogo era caracterizado por “demonologia, feitiçaria, vodu, assassinato, estupro, blasfêmia, suicídio, assassinato, insanidade, perversão sexual, homossexualidade, prostituição, rituais do tipo satânico, jogos de azar, barbárie, canibalismo, sadismo, profanação, invocação de demônios, necromancia, adivinhação e outros ensinamentos”. O processo falhou, mas ela acabou formando o grupo anti-D&D Bothered About Dungeons & Dragons (BADD).

O designer de jogos Michael Gray, da TSR, comento sobre o caso – “Eu estava na TSR quando tudo aconteceu. Ajudou as vendas de D&D, mas muitas pessoas achavam que era uma empresa do mal. Gary Gygax se sentiu tão ameaçado que conseguiu uma nova casa bem longe do Lago Genebra – era um grande segredo”. Ele disse ainda que Gray se sentia ameaçado. Depois de criar o jogo de tabuleiro da TSR, Fantasy Forest, que apresentava vampiros, dragões e lobisomens de desenho animado, ele contava que recebia cartas de ódio dizendo coisas como “Seria melhor se você nunca tivesse nascido do que colocar esses monstros na mente das crianças”.

Por outro lado, embora a imprensa tentasse cobrir os acontecimentos de forma realista, as histórias que emergiam dos relatos dos pais eram inevitavelmente convincentes. Os casos de suicídios relacionados, muitas vezes sem evidências tangíveis, à descoberta de Dungeons & Dragons foram aumentando e foram relatados com cada vez mais frequência, e o Pânico Satânico inevitavelmente acabou na televisão.

O psiquiatra Thomas Radecki apareceu em um episódio do icônico programa do canal CBS 60 Minutes, relatando a história de pais que viram seu filho “invocar um demônio de Dungeons & Dragons em seu quarto antes de se matar”. Nesse episódio também estava presente Gary Gygax , criador de D&D junto com Dave Arneson, designer de D&D, chamado para responder por essas acusações (sem nenhuma basede evidência). Gygax tentou descartar as alegações, chamando-as de “nada mais do que uma caça às bruxas”. Aqui temos um recorte da reportagem que está no youtube.

Eventualmente, a TSR respondeu à pressão do “Pânico Satânico”. As imagens nas capas do Player's Handbook e do Dungeon Master's Guide da época foram substituídos por imagens mais sóbrias, nas reimpressões de 1983. O manual Deities & Demigods seria renomeado para Legends & Lore em 1984, além de remover qualquer menção de demônios em todos os produtos da segunda edição de Advanced Dungeons & Dragons, publicada em 1989. No final da década de 1980, todos os conteúdos e o setor artístico faziam uma limpeza geral de qualquer referência ao folclore do cristianismo.

Os elementos de ódio que aparecem nessa última temporada de Stranger Things podem parecer algo extremamente fora da realidade atual, mas foram coisas vívidas nos anos oitenta nos Estados Unidos. Hoje estamos em uma época onde a indústria do RPG movimenta milhões de dólares nos Estados Unidos, fora o resto de todo mundo. Época em que temos dezenas de novos sistemas e cenários sendo lançados graças à plataformas de financiamento coletivo. Época em que o RPG avança sobre televisão, cinema, quadrinhos e outras tantas mídias.

O ódio ao RPG e seus praticantes ficou para trás, pelo menos nos moldes do que foi visto nos anos oitenta e noventa.

Aqui no Brasil também tivemos nossa caça as bruxas, mas isso é história para outra postagem...

Nenhum comentário: