Pânico Satanista e o
RPG
- um pouco da
história do ódio ao RPG -
Não
é nenhuma novidade, pelo menos entre os rpgistas mais antigos, que RPG foi
associado à ações perigosas e pessoas de caráter satanista. Sério. O que temos
retratado na última temporada de Stranger Things (Netflix) é apenas o cotidiano
daqueles que jogavam RPG nos anos oitenta. Ser taxado de estranho, receber
olhares atravessados de pessoas da família ou se escanteado na escola, tudo
isso era o dia a dia de quem praticava RPG, como se ao invés disso estivéssemos
sacrificando virgens para alguma entidade demoníaca milenar.
Saindo
das piadas, os anos oitenta tiveram sua carga de perseguição sem sentido à
prática do RPG nos Estados Unidos principalmente (principalmente à D&D) e
depois migrando para o Brasil (mais para os anos noventa e mais centrado à
títulos de Vampiro: a Máscara).
O
Pânico Satânico, como muitos chamavam, que é retratado no primeiro episódio do
seriado da Netflix, temos o personagem Eddie, o líder do Hellfire Club (o grupo
de jogadores de D&D ao qual os protagonistas se juntam), zomba de um artigo
da Newsweek que mostra jogadores de D&D como adoradores de Satanás. O
artigo diz “O diabo veio para a América”, e continua dizendo: “Estudos
ligaram o comportamento violento ao jogo, alegando que promove adoração
satânica, sacrifício ritual, sodomia, suicídio e até assassinato”. Mais
tarde, quando o mesmo personagem é acusado de cometer assassinatos hediondos,
algumas pessoas que estão tentando encontrá-lo e linchá-lo comentam: “Ouvi
dizer que o jogo transforma quem o joga em satanistas”.
Pode
parecer algo exagerado ou piada, mas esse era o dia a dia de muitos jogadores e
apreciadores de RPG naqueles tempos.
Em
vários momentos de sua história e vida editorial, Dungeons & Dragons recebeu publicidade
negativa por uma suposta promoção de satanismo, feitiçaria, suicídio,
pornografia e assassinato. O pânico moral, que atingiu o pico na
década de 1980, se espalhou entre muitas pessoas ao incutir o pensamento de que
o mal pode ameaçar o bem-estar da sociedade por meio de D&D. Um medo
generalizado que finalmente mostrou real redução apenas recentemente, apenas
em 2016, segundo uma pesquisa apresentada em uma reportagem do jornal
americano New York Times (When Dungeons & Dragons set off a ‘Moral Panic’).
Stranger
Things nos rememora o chamado “Pânico Satânico” de Dungeons & Dragons,
um momento da história da década de 1980 (quando houve o pico desse sentimento)
em que o RPG mais famoso do mundo era o centro das atenções de todos, até
chegar ao Governo dos Estados Unidos. D&D ganhou fama depois que James
Dallas Egbert III, um estudante de 16 anos da Michigan State University, foi
dado como desaparecido e dado como morto em 1979. O fato de ser descoberto
posteriormente que o jovem havia fugido para a Louisiana devido à uma depressão
grave e tentado se matar por mais de uma vez não impediu o público de pensar
que James havia enlouquecido por causa de Dungeons & Dragons. O jovem
acabou tirando sua própria vida em 1980.
A
ideia de que o jogo poderia distorcer a mente dos jovens logo se tornou a causa
favorita de luta dos cristãos fundamentalistas dos Estados Unidos. Certamente
não ajudou nem um pouco, do ponto de vista deles, as capas dos manuais que
retratavam rostos demoníacos e todas aquelas esquisitices que sempre gostamos,
mas que não se aproximam dos valores cristãos. Após este episódio a verdadeira
cruzada contra D&D começou.
A
história por detrás do que é mostrado em Stranger Things e do Pânico
Satânico é inspirada em uma história real. A cidade de Hawkins (no
seriado) é substituída pela cidade de Heber City, uma cidade em Utah onde um clube
de D&D do ensino médio foi invadido em 1980. Um pequeno grupo de pais
atacou o clube, “preocupado” com as referências satânicas e antirreligiosas que
continham no jogo.
Nesse
mesmo período também foi lançado o manual Divindades & Semideuses,
dedicado aos deuses do mundo dos jogos, cujo conteúdo ajudou a inflamar a ira dos
pais fundamentalistas. Frases como “servir uma divindade é uma
parte significativa do D&D e todos os personagens dos jogadores devem ter
um deus patrono” certamente não ajudaram a acalmar as águas. Além
disso, os pais também se agarraram a outra frase do Guia do Mestre – “Independentemente
de o personagem professar ativamente alguma divindade, ele terá uma tendência e
servirá à uma ou mais divindades dessa tendência geral indiretamente e sem o
conhecimento do personagem”. Este passo foi, de acordo com os críticos
de Dungeons & Dragons, uma espécie de mecanismo de chamariz para
os jogadores mais jovens: as crianças foram informadas de que tudo era apenas
um jogo, mas sem que elas soubessem que estavam servindo a forças sinistras.
Essa era a desculpa que eles queriam para partir definitivamente para o ataque.
A
cruzada contra o D&D começou em todos os Estados Unidos, com o mesmo
objetivo: afastar as crianças de um jogo satânico. Pais, igrejas e comunidades
católicas e imprensa aproveitaram a oportunidade para alimentar os leitores com
manchetes sensacionalistas e instigadoras. Grupos de jogos, clubes e
jogadores de todos os estados foram visados, colocados no centro das histórias
relacionadas ao satanismo e cultos. No verão de 1982, o jogo foi banido dos
distritos escolares de Oklahoma devido à sua “natureza satânica”.
Em
1984 as coisas ficaram ainda piores. No final de 1984, Patricia Pulling de
Richmond, Virgínia, tentou processar a editora de TSR e Gary Gygax, o
co-criador de D&D, depois que seu filho de 16 anos, Irving “Bink” Pulling
II, tirou a própria vida. Ela acreditava que isso era resultado dele ter sido “amaldiçoado”
por um colega jogador de D&D. Para Pulling, o jogo era caracterizado
por “demonologia, feitiçaria, vodu, assassinato, estupro, blasfêmia,
suicídio, assassinato, insanidade, perversão sexual, homossexualidade,
prostituição, rituais do tipo satânico, jogos de azar, barbárie, canibalismo,
sadismo, profanação, invocação de demônios, necromancia, adivinhação e outros
ensinamentos”. O processo falhou, mas ela acabou formando o grupo
anti-D&D Bothered About Dungeons & Dragons (BADD).
O
designer de jogos Michael Gray, da TSR, comento sobre o caso – “Eu estava na
TSR quando tudo aconteceu. Ajudou as vendas de D&D, mas muitas pessoas
achavam que era uma empresa do mal. Gary Gygax se sentiu tão ameaçado que
conseguiu uma nova casa bem longe do Lago Genebra – era um grande segredo”.
Ele disse ainda que Gray se sentia ameaçado. Depois de criar o jogo de
tabuleiro da TSR, Fantasy Forest, que apresentava vampiros, dragões e
lobisomens de desenho animado, ele contava que recebia cartas de ódio dizendo coisas
como “Seria melhor se você nunca tivesse nascido do que colocar esses
monstros na mente das crianças”.
Por
outro lado, embora a imprensa tentasse cobrir os acontecimentos de
forma realista, as histórias que emergiam dos relatos dos pais eram
inevitavelmente convincentes. Os casos de suicídios relacionados, muitas
vezes sem evidências tangíveis, à descoberta de Dungeons & Dragons foram
aumentando e foram relatados com cada vez mais frequência, e o Pânico Satânico
inevitavelmente acabou na televisão.
O
psiquiatra Thomas Radecki apareceu em um episódio do icônico programa
do canal CBS 60 Minutes, relatando a história de pais que viram seu filho “invocar
um demônio de Dungeons & Dragons em seu quarto antes de se matar”. Nesse
episódio também estava presente Gary Gygax , criador de D&D junto
com Dave Arneson, designer de D&D, chamado para responder por essas
acusações (sem nenhuma basede evidência). Gygax tentou descartar as
alegações, chamando-as de “nada mais do que uma caça às bruxas”. Aqui temos um recorte da reportagem que está no youtube.
Eventualmente,
a TSR respondeu à pressão do “Pânico Satânico”. As imagens nas capas do Player's
Handbook e do Dungeon Master's Guide da época foram substituídos
por imagens mais sóbrias, nas reimpressões de 1983. O manual Deities
& Demigods seria renomeado para Legends & Lore em 1984,
além de remover qualquer menção de demônios em todos os produtos da segunda
edição de Advanced Dungeons & Dragons, publicada em 1989. No final da
década de 1980, todos os conteúdos e o setor artístico faziam uma limpeza geral
de qualquer referência ao folclore do cristianismo.
Os
elementos de ódio que aparecem nessa última temporada de Stranger Things podem
parecer algo extremamente fora da realidade atual, mas foram coisas vívidas nos
anos oitenta nos Estados Unidos. Hoje estamos em uma época onde a indústria do
RPG movimenta milhões de dólares nos Estados Unidos, fora o resto de todo
mundo. Época em que temos dezenas de novos sistemas e cenários sendo lançados
graças à plataformas de financiamento coletivo. Época em que o RPG avança sobre
televisão, cinema, quadrinhos e outras tantas mídias.
O
ódio ao RPG e seus praticantes ficou para trás, pelo menos nos moldes do que
foi visto nos anos oitenta e noventa.
Aqui
no Brasil também tivemos nossa caça as bruxas, mas isso é história para outra postagem...
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