quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Conto para Muito Abaixo do Oceano – Jornada Perigosa - Fragmento 03

 
Jornada Perigosa: 
Fragmento 3

 
Doutor Maturin” – o chamado foi seguido de algumas batidas do lado de fora da porta, antes dela ser aberta suavemente – “o senhor está sendo requisitado na ponte com urgência!

A mensagem era trazida por um garoto de doze anos, trajando roupas típicas dos mensageiros da frota - Lucien. Um dos três jovens irmãos à bordo do submarino de terceira classe Nouvel Espoir, chamados carinhosamente de les lièvres devido à correria que promoviam pela embarcação. Eram os responsáveis por toda a comunicação interna que não pudesse ser feita pelos tubos de voz, comunicadores ou que deveriam ser discretas.

Oh, céus... diga ao homem que já vou, já vou...” – Stephan Maturin gemeu enquanto recolhia uma infinidade de pequenas caixinhas de amostras que haviam caído das prateleiras que ocupavam vários espaços de sua cabine. O chão estava uma mistura de caixas de madeira, livros de vários tamanhos e grossuras, tubos de ensaio e folhas manuscritas. Ele ia pegando suas coisas e improvisando uma organização caótica entre sua cama e a mesa no canto.

Ele disse que é urgente, senhor...” – repetiu o garoto constrangido, com medo de estar sendo desrespeitoso. Mas Stephan Maturin não se importava com essas formalidades ou qualquer representação de status de patente. Ele só se importava com suas pesquisas, com a ciência.

Ante a insistência educada de Lucien, Stephen o olhou com calma enquanto colocava algumas folhas sobre o travesseiro – “sim, ele está sempre com pressa... vamos ver o que o nosso capitão quer... Mostre-me o caminho marujo”. Ele saiu vestindo a casaca do uniforme enquanto pegava seu caderno de anotações e batendo a porta, acompanhando o garoto pelo corredor principal em direção à proa.

Por todo o caminho ele percebia um sentido de urgência em todos os tripulantes. Ninguém conversava, mas era nítida alguma apreensão. Por certo não sabiam o que havia acontecido ou estariam comentando algo. A dúvida era o pior que podia acontecer com eles. Semblantes de dúvida por todos os lados. Por onde ia passando recebia as devidas saudações de respeito. Ele era o primeiro tenente cientista do submarino, patente recebida graças aos seus estudos e especializações e não pela carreira militar. Um privilégio, mas ainda assim um posto de comando... que ele não ligava.

Ele respondia as continências constrangido hora aqui, hora ali, mas sem se importar muito. Todos já sabiam de seu bom espírito e camaradagem, além da despreocupação com a hierarquia, mas todos o saudavam do mesmo jeito, pelo costume da conduta e treinamento militar.

Stephen subiu a escada em caracol da sala dos oficiais seguindo Lucien. Era o caminho mais rápido até seu destino. A escada dava diretamente no corredor defronte à antessala da ponte de comando, onde uma porta pesada de metal ornamentada estava escancarada.

Lucien entrou rapidamente correndo em direção à figura imponente que estava de frente para a enorme janela frontal do Nouvel Espoir. Ao lado dele outros oficiais trocavam ordens e comandos, resignados e austeros. Havia agitação, mas não desespero, o que era um ótimo sinal para Stephan. A urgência nos afazeres era o típico movimento em uma ponte de uma tripulação muito bem treinada. Já o desespero seria um mau presságio.

As luzes do ambiente ainda estavam piscando aqui e ali mesmo alguns minutos após o forte solavanco do submarino. Lá fora, através do vidro, escuridão. As luzes da proa estavam desligadas ou com falha.

Lucien parou na frente do Capitão, fez continência e declarou – “Ele está aqui!

O Capitão Croix era o exemplo de pessoa que nasceu para o que fazia – comandar. Sua postura, sua aura, faziam qualquer um seguir suas ordens sem pestanejar... e ele fazia isso sem precisar usar do terror, como muitos capitães e almirantes da frota o faziam por gosto. Ele conseguia isso com o respeito conquistado. Até mesmo o seu gesto de se virar para me cumprimentar já era digno de nota e impacto.

Meu bom Stephan... que bom que está tudo bem contigo e que podes vir rápido. Sentiu a turbulência?

Quer dizer o solavanco?... Como não. Agora tenho pilhas de amostras e documentos para reorganizar. Quem estava pilotando essa geringonça avançou demais no rum?” – a tentativa de piada de Stephan para descontrair era uma artimanha comum para ele, principalmente quando previa um problema. Mesmo com tudo aparentemente calmo, ele percebia um certo grau de tensão escondido no ar.

Rogo-lhe que me desculpe, mas sua apreciação é urgente” – Ele dá um passo para o lado como que deixando toda a janela para os olhos de Stephan – “Liguem as luzes externas frontais!

Todos fizeram silêncio e as luzes foram ligadas.

Tais luzes tinham a capacidade de iluminar uma longa distância, mesmo em grandes profundidades. Eram a alma para os pilotos manterem a segurança da embarcação e desviar de obstáculos ou procurar uma melhor rota. Quando as luzes iluminaram o exterior os olhos de Stephan precisaram de um instante para se acostumarem. Mas tão logo ele conseguiu discernir o que estava lá fora, seus olhos se arregalaram e ele deus alguns passos desconcertados para a frente até quase encostar o nariz na janela.

O Nouvel Espoir estava parado entre duas enormes colunas de rocha maciça que rapidamente ele percebeu que serviam de proteção para o submarino. Proteção do quê? Algumas léguas à frente havia nitidamente uma correnteza com uma coloração mais turva que o mar normal, levemente avermelhado quase tinto, principalmente sob a forte iluminação. Essa correnteza era gigantesca, forte e constante vindo de algum ponto. Pelo tamanho, facilmente engoliria uma dúzia de submarinos como o nosso, e pela força, nos arrastaria sem dificuldade. Mas não era só isso que o impressionava. Essa correnteza fazia se acumular em alguns bolsões entre cânions por léguas e léguas alguma coisa que o tenente não consegui distinguir. Ele apertou os olhos e aos poucos foi compreendendo o que seus olhos viam – submarinos.

Ele se virou com olhar espantado para Croix – “Aquilo são... submarinos?

Não submarinos, destroços de submarinos corroídos... Precisamos descobrir o que é isso tudo!

Stephan continuava olhando atentamente enquanto seu cérebro repassava tudo o que já havia estudado, lido, cada livro, cada ensaio, cada aula assistida e conversa tida na universidade. Ele tinha uma mente até certo ponto privilegiada, tendo facilidade de recordar mínimos detalhes de muitas coisas lidas ou estudadas. Um privilégio. Uma maldição. De repente, de uma gaveta escondida atrás de algum neurônio adormecido, ele resgata uma lembrança. Um pequeno trecho de uma obra lida eras atrás, logo que havia se formado. Ele lembrava da página exata e de onde o livro estava em sua cabine. Eram vívidas as palavras daquela estupenda obra...

É prudente salientar que os mares ácidos são uma novidade para a ciência, que ainda engatinha de mãos dadas com a humanidade nas profundezas do oceano. Nossa estadia nesta grandiosidade ainda é recente e não passamos de neófitos frente a imensidão do tempo e das águas. Este estudo que se tornou um livro, embora extenso, suscita mais questionamentos do que abre portas para certezas. Mas de todos esses questionamentos e dúvidas, se alguma banca de meus pares me rogasse para elencar o que mais me intriga, minha resposta seria certeiramente uma. Levando adiante e à cabo as equações do professor Klein Braun sobre a fluidez dos líquidos ao longo das mudanças de temperatura em profundidades medianas, minha resposta estaria na possibilidade, ainda não provada, das correntezas ácidas. O que procuro, e ainda pretendo responder se os anos não me pesarem por demais, é da possibilidade que tais correntezas potencializarem ainda mais os perigos dos mares ácidas criando um perigo não estático, mas móvel e traiçoeiro. Não vou me delongar neste posfácio em tais elocubrações que merecem a devida ponderação e pesquisa, mas saliento que será meu próximo alvo de estudo.”

- Fragmento do posfácio da obra “Os Mistérios Além dos Olhos:
recentes descobertas do vulcanismo oceanográfico
 no Mar dos Náufragos”, de George Julius Poullet Scrope,
Instituto Lindenbrock, 1874.


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