Jornada Perigosa: Fragmento 3
“Doutor
Maturin” – o chamado foi seguido de algumas batidas do lado de fora da
porta, antes dela ser aberta suavemente – “o senhor está sendo requisitado
na ponte com urgência!”
A
mensagem era trazida por um garoto de doze anos, trajando roupas típicas dos
mensageiros da frota - Lucien. Um dos três jovens irmãos à bordo do submarino
de terceira classe Nouvel Espoir, chamados carinhosamente de les lièvres devido
à correria que promoviam pela embarcação. Eram os responsáveis por toda a comunicação
interna que não pudesse ser feita pelos tubos de voz, comunicadores ou que
deveriam ser discretas.
“Oh,
céus... diga ao homem que já vou, já vou...” – Stephan Maturin gemeu enquanto
recolhia uma infinidade de pequenas caixinhas de amostras que haviam caído das
prateleiras que ocupavam vários espaços de sua cabine. O chão estava uma
mistura de caixas de madeira, livros de vários tamanhos e grossuras, tubos de
ensaio e folhas manuscritas. Ele ia pegando suas coisas e improvisando uma
organização caótica entre sua cama e a mesa no canto.
“Ele
disse que é urgente, senhor...” – repetiu o garoto constrangido, com medo
de estar sendo desrespeitoso. Mas Stephan Maturin não se importava com essas
formalidades ou qualquer representação de status de patente. Ele só se
importava com suas pesquisas, com a ciência.
Ante
a insistência educada de Lucien, Stephen o olhou com calma enquanto colocava
algumas folhas sobre o travesseiro – “sim, ele está sempre com pressa...
vamos ver o que o nosso capitão quer... Mostre-me o caminho marujo”. Ele saiu
vestindo a casaca do uniforme enquanto pegava seu caderno de anotações e batendo
a porta, acompanhando o garoto pelo corredor principal em direção à proa.
Por
todo o caminho ele percebia um sentido de urgência em todos os tripulantes.
Ninguém conversava, mas era nítida alguma apreensão. Por certo não sabiam o que
havia acontecido ou estariam comentando algo. A dúvida era o pior que podia
acontecer com eles. Semblantes de dúvida por todos os lados. Por onde ia
passando recebia as devidas saudações de respeito. Ele era o primeiro tenente
cientista do submarino, patente recebida graças aos seus estudos e
especializações e não pela carreira militar. Um privilégio, mas ainda assim um
posto de comando... que ele não ligava.
Ele
respondia as continências constrangido hora aqui, hora ali, mas sem se importar
muito. Todos já sabiam de seu bom espírito e camaradagem, além da
despreocupação com a hierarquia, mas todos o saudavam do mesmo jeito, pelo
costume da conduta e treinamento militar.
Stephen
subiu a escada em caracol da sala dos oficiais seguindo Lucien. Era o caminho
mais rápido até seu destino. A escada dava diretamente no corredor defronte à
antessala da ponte de comando, onde uma porta pesada de metal ornamentada
estava escancarada.
Lucien
entrou rapidamente correndo em direção à figura imponente que estava de frente
para a enorme janela frontal do Nouvel Espoir. Ao lado dele outros oficiais
trocavam ordens e comandos, resignados e austeros. Havia agitação, mas não
desespero, o que era um ótimo sinal para Stephan. A urgência nos afazeres era o
típico movimento em uma ponte de uma tripulação muito bem treinada. Já o
desespero seria um mau presságio.
As
luzes do ambiente ainda estavam piscando aqui e ali mesmo alguns minutos após o
forte solavanco do submarino. Lá fora, através do vidro, escuridão. As luzes da
proa estavam desligadas ou com falha.
Lucien
parou na frente do Capitão, fez continência e declarou – “Ele está aqui!”
O
Capitão Croix era o exemplo de pessoa que nasceu para o que fazia – comandar.
Sua postura, sua aura, faziam qualquer um seguir suas ordens sem pestanejar...
e ele fazia isso sem precisar usar do terror, como muitos capitães e almirantes
da frota o faziam por gosto. Ele conseguia isso com o respeito conquistado. Até
mesmo o seu gesto de se virar para me cumprimentar já era digno de nota e impacto.
“Meu
bom Stephan... que bom que está tudo bem contigo e que podes vir rápido. Sentiu
a turbulência?”
“Quer
dizer o solavanco?... Como não. Agora tenho pilhas de amostras e documentos para
reorganizar. Quem estava pilotando essa geringonça avançou demais no rum?” –
a tentativa de piada de Stephan para descontrair era uma artimanha comum para
ele, principalmente quando previa um problema. Mesmo com tudo aparentemente
calmo, ele percebia um certo grau de tensão escondido no ar.
“Rogo-lhe
que me desculpe, mas sua apreciação é urgente” – Ele dá um passo para o
lado como que deixando toda a janela para os olhos de Stephan – “Liguem as
luzes externas frontais!”
Todos
fizeram silêncio e as luzes foram ligadas.
Tais
luzes tinham a capacidade de iluminar uma longa distância, mesmo em grandes
profundidades. Eram a alma para os pilotos manterem a segurança da embarcação e
desviar de obstáculos ou procurar uma melhor rota. Quando as luzes iluminaram o
exterior os olhos de Stephan precisaram de um instante para se acostumarem. Mas
tão logo ele conseguiu discernir o que estava lá fora, seus olhos se
arregalaram e ele deus alguns passos desconcertados para a frente até quase
encostar o nariz na janela.
O
Nouvel Espoir estava parado entre duas enormes colunas de rocha maciça que
rapidamente ele percebeu que serviam de proteção para o submarino. Proteção do
quê? Algumas léguas à frente havia nitidamente uma correnteza com uma coloração
mais turva que o mar normal, levemente avermelhado quase tinto, principalmente
sob a forte iluminação. Essa correnteza era gigantesca, forte e constante vindo
de algum ponto. Pelo tamanho, facilmente engoliria uma dúzia de submarinos como
o nosso, e pela força, nos arrastaria sem dificuldade. Mas não era só isso que o
impressionava. Essa correnteza fazia se acumular em alguns bolsões entre
cânions por léguas e léguas alguma coisa que o tenente não consegui distinguir.
Ele apertou os olhos e aos poucos foi compreendendo o que seus olhos viam – submarinos.
Ele
se virou com olhar espantado para Croix – “Aquilo são... submarinos?”
“Não
submarinos, destroços de submarinos corroídos... Precisamos descobrir o que é
isso tudo!”
Stephan
continuava olhando atentamente enquanto seu cérebro repassava tudo o que já
havia estudado, lido, cada livro, cada ensaio, cada aula assistida e conversa
tida na universidade. Ele tinha uma mente até certo ponto privilegiada, tendo facilidade
de recordar mínimos detalhes de muitas coisas lidas ou estudadas. Um
privilégio. Uma maldição. De repente, de uma gaveta escondida atrás de algum
neurônio adormecido, ele resgata uma lembrança. Um pequeno trecho de uma obra
lida eras atrás, logo que havia se formado. Ele lembrava da página exata e de
onde o livro estava em sua cabine. Eram vívidas as palavras daquela estupenda
obra...
“É prudente
salientar que os mares ácidos são uma novidade para a ciência, que ainda
engatinha de mãos dadas com a humanidade nas profundezas do oceano. Nossa
estadia nesta grandiosidade ainda é recente e não passamos de neófitos frente a
imensidão do tempo e das águas. Este estudo que se tornou um livro, embora
extenso, suscita mais questionamentos do que abre portas para certezas. Mas de
todos esses questionamentos e dúvidas, se alguma banca de meus pares me rogasse
para elencar o que mais me intriga, minha resposta seria certeiramente uma.
Levando adiante e à cabo as equações do professor Klein Braun sobre a fluidez
dos líquidos ao longo das mudanças de temperatura em profundidades medianas,
minha resposta estaria na possibilidade, ainda não provada, das correntezas
ácidas. O que procuro, e ainda pretendo responder se os anos não me pesarem por
demais, é da possibilidade que tais correntezas potencializarem ainda mais os
perigos dos mares ácidas criando um perigo não estático, mas móvel e traiçoeiro.
Não vou me delongar neste posfácio em tais elocubrações que merecem a devida
ponderação e pesquisa, mas saliento que será meu próximo alvo de estudo.”
- Fragmento do
posfácio da obra “Os Mistérios Além dos Olhos:
recentes
descobertas do vulcanismo oceanográfico
no Mar dos Náufragos”, de George Julius
Poullet Scrope,
Instituto
Lindenbrock, 1874.
Acompanhe os contos anteriores:
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