quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Romance

Por mares nunca antes navegados
Parte 2 - A aventura inicia -
João Eugênio Córdova Brasil

VII. Novo tripulante

Os homens são suscetíveis ao meio que os rodeia. Qualquer novidade, qualquer combate, qualquer cor afeta-os de alguma forma. E com os tripulantes do Gaivota pateada não foi diferente. Um dia havia se passado desde que encontraram a primeira vila deste novo continente, muito embora estivesse destruída. E as novidades não acabaram por aí. Outros piratas, violência desmedida e morte.
Tudo os afeta.

- Há quanto tempo está aqui? - raramente Syan subia na cesta, no refúgio de Slocun. E mais raramente ainda Syan tinha tido a oportunidade de ver seu capitão e amigo tão deprimido.

- Não muito, eu acho, não sei ao certo.

- Já vamos comer....nos acompanha?

- Estou com fome mesmo. Já é hora do almoço. Nem percebi que havia ficado tanto tempo aqui.

- Jantar! Vamos jantar! Você ficou aqui o dia todo, meu caro. O problema daquele menino o afetou muito pelo visto.

- Talvez.

- O que quiseste dizer naquele dia? - Syan pegou Sclocun de surpresa com a pergunta.

- Do que está falando amigo....que dia? - a surpresa simulada de Slocun, na tentativa de desconversar, foi claramente frustrada. Mas deixou claro que não estava à vontade falando no assunto.

- Embora te considere um ótimo amigo não conheço quase nada do seu passado e acho que algo do que aconteceu lançou-te em lembranças enterradas à muito. Tenho uma certa facilidade em perceber as coisas. Deve ser uma dádiva de meu Deus....ou uma maldição, ainda não sei....

- Existem cavernas escuras em todas as almas. Daquele tipo que depois que conseguimos encontrar a saída, até a superfície, juramos nunca mais retornar - disse Joshua entre suspiros. E o assunto terminou ali mesmo.

Mais um dia se passou.

- Como você se sente? - as palavras de Slocun tornavam-se mais profundas quando aliadas ao seu olhar, terno mas firme.

- Lhe devo minha vida, senhor - o garoto tentava recostar-se com dificuldade na cabeceira da cama improvisada nos aposentos de Syan.

- Sou um pirata, não um assassino frio. Não o deixaria naquela situação sem fazer nada. A vida do mar não combina com chacinas. Qual seu nome?

- Horen...e os outros? Mais alguém sobreviveu? Havia uma mulher comigo... - o sobressalto parecia ter tirado o rapaz de um pesadelo e o jogado na realidade. Os olhos esbugalhados corroboravam o terror que sentia.

- Havia mais três contigo na cabana. E os três sobreviveram, mas ainda estão adormecidos. Graças aos cuidados mágicos que Syan aplicou-lhes a dor não os aflige enquanto estão convalescendo.

- Quero vê-los - não era apenas um pedido, era uma sentença ganhando ares de ordem.

Slocun tinha de concordar. O garoto não era comum. Tinha um porte, uma presença diferente das pessoas comuns. Algo marcante. Possuía aquele tipo de presença que todos notam e admiram - “e isto deve ter irritado muito aquele touro meio homem”.

- E se eu disser que não - murmurou Joshua com aquele sorrisinho típico e debochado.

- Terei de achar o caminho sozinho... com ou sem ajuda - e foi levantando como dava.

- Você não vai a lugar algum garoto... - e o capitão fez uma breve e irritante pausa - ... sem as muletas meu caro senhorzinho.

O rapaz agarrou-as à contra gosto e num salto parou de pé para, em seguida, tombar de volta à cama. A rapidez do movimento deixou-o zonzo. Os ferimentos aliados ao balançar do navio facilitaram em muito a perda do equilíbrio.

Constrangido, mas com um olhar um pouco mais humilde, olhou para o capitão balbuciando - Acho que tenho de ir com um pouco mais de calma, não é?

- Seria prudente. Dê-me o braço que eu ajudo.

- Ora, ora...nosso passarinho quer bater as asas e voar - Syan surgiu do nada, como sempre. Sua forma exoticamente estranha assustaria, se não fosse tão hilária.

Rapidamente puxou o rapaz para perto e abriu-lhe os olhos com seus dedos, olhando atentamente. Em seguida, quase sem dar tempo ao rapaz de aprumar o olhar, abriu-lhe a boca enfiando-lhe uma espátula sobre a língua. O rapaz permanecia atordoado, terminando por cair mais uma vez sentado na cama.

- Este é Syan. E se deve a vida à alguém com certeza é a ele. Como ele está amigo?

- Quase novo em folha. Vão dar uma voltinha? - Syan continuava com um olhar curioso para o rapaz.

- Vamos visitar os nossos outros hóspedes. Vamos garoto. Quanto antes irmos melhor. Assim poderá voltar ao repouso - abriu a porta indicando-lhe o caminho.


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Era um dia frio e nublado. O vento forte garantiria uma considerável velocidade à embarcação, não estivessem as velas sendo utilizadas à metade de seu número. Slocun não tinha certeza do que fazer ou para onde ir ainda.


Queria um certo tempo para pensar ou pelo menos saber o que havia acontecido dois dias atrás.

Haviam ficado na ilha de Kumbach o suficiente para conseguir pegar os suprimentos necessários e zarpar. Os piratas que enfrentaram não estavam sozinhos, com certeza. E muito provavelmente logo estariam sendo procurados. Slocun queria manter o efeito surpresa.

Mas mesmo à baixa velocidade, o balançar resultante do mar agitado já era mais que o suficiente para desequilibrar o garoto enfermo. Mesmo assim ele conseguia mover-se quase normalmente - se é que com duas muletas pode-se mover normalmente. Slocun percebia que o garoto conhecia sobre a vivência do mar.

Desceram um lance de escadas e percorreram um curto corredor. Fizeram o caminho em silêncio. Pararam em frente a uma porta e Slocun empurrou-a de leve, abrindo-a sem muita resistência. Era um cômodo pequeno - como todos dentro de um navio. Haviam pequenas camas armadas em forma de beliches. Três delas estavam ocupadas por três mulheres - uma velha e duas bem mais novas.

O rapaz estava parado no mesmo lugar analisando a cena cuidadosamente. Olhou mulher por mulher com todo o cuidado. Olhos firmes e impassíveis.

Olhou de início as mais novas. A primeira estava na puberdade e era claramente humana. Não possuía traços de animal algum. Era a menos machucada das três. Possuía apenas alguns cortes, num dos braços, aplicados por alguma navalha afiada e de forma cuidadosa. Não eram cortes de luta, mas cortes feitos por um torturador aplicado. Seu rosto estava razoavelmente esfolado e com alguns hematomas. Pelo menos um soco certeiro recebera em sua face. Estava dormindo magicamente porque Syan havia detectado nela algumas costelas quebradas. Sua recuperação seria mais rápida assim.

A segunda moça era irmã, ou possuía algum parentesco com a menor, visto que a semelhança era enorme entre elas. Seu estado estava um pouco pior. Havia sido espancada e os machucados generalizados pelo corpo corroboravam com está idéia. Além de alguns ossos quebrados os pulsos estavam muito marcados. Quando foi encontrada dentro da cabana estava dependurada por eles há muito tempo.

Mas a terceira, e mais velha, ganhou uma atenção mais demorada do garoto. Era ela também a mais debilitada. Pelo que Syan percebeu com seu estado é que havia sido, junto com o garoto, o alvo principal dos torturadores. Ela possuía marcas de chicotadas nas costas e queimaduras nos braços feitos com ferro em brasa. Seu flagelo foi longo. Havia perdido muito sangue e um dos olhos. Sua aparência calma enquanto deitada ali, na frente do rapaz, em nada parecia com o estado em que estava quando encontrada na ilha.

- Vocês os mataram? - a voz parecia não sair de sua boca. A única alteração no rapaz era um aumento da respiração. As inspirações tornaram-se mais profundas. As expirações mais longas.

- Eles pagaram da forma devida, posso garantir.

- Ótimo.

Sem dizer nada o rapaz virou-se e começou o percurso de volta. Slocun percebia que o garoto fora afetado pela visão. Mesmo estando naquele inferno ele deve ter ficado boa parte do tempo desacordado. Mesmo assim ele tentava manter a aparência de forte. Voltou sem ajuda.


__________ o O o __________

Duas canecas fumegantes cruzavam o estreito e escuro corredor do primeiro nível do Gaivota Prateada. O aroma de café era inebriante. Na outra extremidade delas estava o Capitão. Joshua Slocun. Neste dois últimos dias, desde que enfrentaram os piratas na ilha de Kumbach, ele houvera sido muito aplicado nos cuidados ao jovem Horen, desde que este despertou. A tripulação já havia percebido isto, mas ninguém se atrevia a questiona-lo o porque.

Já havia passado da meia-noite mas Slocun sabia que o garoto estaria acordado. Ele tinha certeza disso.
Duas batidas secas na cabine de Syan seguidas de sons de movimentação vindas de dentro. A porta entreabriu e Slocun enfiou uma das canecas para dentro.

- Café? - pergunta Joshua.

- Como adivinhou, ou o nobre Capitão também é um adivinho da Altiva?

- Adivinho não, mas alguém que está acostumado a virar muitas noites sem dormir. E neste caso nada melhor do que café. Temos de conversar!

A cabine estava fracamente iluminada graças à chama de uma vela que balançava em seu suporte. Sua movimentação gerava contornos fantasmagóricos em todos os objetos dentro do aposento.

O rapaz retornou para sua cama e Slocun acomodou-se em uma cadeira junto da escrivaninha. Mantiveram-se em silêncio por alguns goles.

- Pode não ser ainda o momento certo, mas temos de conversar sério Horen.

- Nunca haverá um momento apropriado para isso capitão.

- Preciso saber no que me meti. Sei que haverá um preço pela minha intromissão e tenho toda uma tripulação sob minha responsabilidade.

Horen tomou um longo gole como que tentando que o café despertasse suas lembranças. Olhar fixo no horizonte.


- O Corvo. Não sei seu nome verdadeiro, mas todos o chamam assim, da mesma forma que sua embarcação.

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