sábado, 29 de agosto de 2009

Romance

Por mares nunca antes navegados
Parte 2 -A Aventura Inicia
João Eugênio Córdova Brasil


VIII. Os Quatro

Horen sorveu um longo gole da bebida quente enquanto se ajeitava na cama de modo a ficar recostado nos travesseiros. Slocun lhe fez um sinal com o dedo.

“- Mesmo que este assunto seja um segredo gostaria de ter junto à nós Tugar e Syan, se não se importa.”

O rapaz fez um sinal de aprovação com a cabeça e Slocun abriu a porta do aposento solicitando que um dos marujos os localizasse e os chamasse imediatamente. Nem dois minutos passaram e os dois já estavam sentados ao redor da cama de Horen, cada um com sua caneca e seu cachimbo. O rapaz se recostou um pouco mais baixo e começou a sua narrativa.

“Como eu disse seu nome é ‘o Corvo’. Ele deve ter um outro nome, mas nunca soube. Seu navio tem o mesmo nome.

Ele está atrás de nós à algum tempo. Nem me lembro muito bem, mas deve fazer uns seis anos.

Lembro de minha infância, brincando com outras crianças. Morávamos numa vila relativamente grande na costa sul de Laughton. Embora toda a população tivesse alguma ligação com a pirataria, não éramos importunados por autoridades. As leis do reino são, por assim dizer, bem frouxas. Então muitas vilas da costa são moradas de grupos de piratas, principalmente ao sul da grande ilha.

Nossa vila chamava-se Northun. Toda a sua vida girava ao redor de três navios piratas – o Alcatéia, o Corvo e o Vento Cortante. Então, nada mais comum, que todos os familiares das tripulações vivessem por ali.

Os três capitães eram amigos de infância. E esta história me fora contada inúmeras vezes. Nasceram nas planícies entre os Rios Gêmeos numa das tantas vilas comerciais que ali residem. Mas desde que viram o mar pela primeira vez decidiram que seriam aventureiros dos oceanos. Eram inseparáveis e assim, juntos, foram tentar a sorte nos portos de Zenkrid. Não existe em toda a Moreania lugar melhor se você quer tentar a vida como marujo, corsário ou pirata, se não se importar com as leis. Não que eles fossem bandidos, muito pelo contrário.

Embora Zenkrid tenha uma fama duvidosa, é um paraíso se você é avesso à leis e não se importa em conseguir algum trabalho meio ilegal numa embarcação qualquer. Pelo que Gares contava-nos foi o trabalho mais fácil que conseguiram.”

Slocun interrompeu a narrativa – “Gares é o mesmo Capitão Garas?” – questionou.

“Sim. Na verdade seu nome é Gares Tyllon. Mas quase todos os chamam apenas de Garas.

Continuando. Logo que chegaram por lá, na primeira taverna que entraram já estavam procurando marujos.

Gares disse que antes do término do dia já estavam trabalhando no convés de um navio pirata – o Imperius. Eram tempos prósperos para a vida no mar. Muitas rotas comerciais estavam sendo criadas, Deepgate estava florescendo e tudo parecia mais seguro no mar.

Não demorou muito para que os três começassem a despontar frente os outros marujos, mesmo os mais antigos. Parecia que tinham nascido para aquela atividade. Quando diziam que haviam nascido longe de qualquer praia não acreditavam. Mas isso não parecia fazer diferença. Seu empenho e alegria no que faziam eram gritante. Antes dos vinte anos já eram esgrimistas reconhecidos e navegadores promissores, conhecendo cada afazer, cada tarefa, cada minúcia da vida no mar.

Os ganhos foram tantos para o capitão que os contratou, e seu desenvolvimento tão promissor, que chegaram a um acordo. Quando houvesse condição capturariam um navio para começarem uma frota. Queriam ser os quatro maiores capitães dos mares de Moreania.

Menos de um ano depois já existia a frota conhecida simplesmente por ‘Os quatro’.

A frota era formado pela nau capitânia Imperius, do capitão Ross Ourant. Portador da herança do coelho era uma figura cômica pela aparência. Mas sua fama trazia calafrios à todos os mercadores do norte da Ilha Nobre. Ele encabeçava e liderava a frota. Os outros três navios pertenciam à Garas e seus dois amigos.

O Corvo, capitaneado pelo Corvo, era uma galeão que embora enorme não mostrava-se lento. Este fora o primeiro navio a ser capturado pelo capitão Ross. Conforme haviam combinado, a embarcação ficou com o ganhador de um jogo de cartas.

O Vento Cortante, o segundo navio, era um sloop - pequeno e imbatível em velocidade. O capitão Tingui ‘Risada Solta’ Makron ganhou o direito pela embarcação vencendo Garas numa queda de braço.

A última embarcação – o Alcatéia – era um sonho de navio. Gares dizia que quando colocou os olhos nele foi paixão à primeira vista. Foram duas semanas de perseguição até encontrar a rota daquela embarcação. O Alcatéia não é só um clipper, mas o maior existente. Tinha o equilíbrio perfeito entre velocidade, manobralidade e força.

Estes eram ‘os Quatro’. Foram anos de aventuras pelos mares de Moreania. Tornaram-se o terror daqueles mares. Embora não fossem violentos – pelo menos Garas e Tingui não o eram – eram rápidos e mortíferos na aquisição das pilhagens. Foram incontáveis as embarcações que deixaram vazias, apenas com rações para voltarem à terra ou em botes próximos de ilhas. Foram épocas de ganho enorme e fácil.

Mas nada dura para sempre e o que poderia ser o maior grupo de saqueadores que Moreania já houvera visto, mudou de rumos.

Os humores nunca foram uma maravilha, embora tivessem uma amizade de longa data. A ganância e a inveja também atrapalharam o convívio deles depois de um certo tempo. O Corvo queria poder, queria ser o maior de todos e não se importava de usar de violência extrema para isso. Tingui era um boa vida galanteador cuja a única preocupação era que o dinheiro para o rum e para as mulheres não acabasse. Gares era um líder nato e desejava poder, mas sem ter de sujar as mãos de sangue mais do que o necessário. Já o Capitão Ross inveja os três pela admiração que cada um tinha de seus marujos e pela incrível habilidade de suas embarcações. Em suma, era um barril de pólvora prestes a explodir.

Quando tudo estava pelo fio da espada algo aconteceu.

Numa das inúmeras investidas contra navios mercantes esbarraram num comboio de pequenas embarcações. Eram cinco pequenos navios que facilmente foram abordados e dominados. Os tripulantes eram serviçais de um rico comerciante que transportava seus bens em direção a Pendrick. Muito ouro, jóias e outras riquezas foram encontradas e divididas. Mas encontraram também algo que não esperavam. Num fundo falso do assoalho da cabine de um dos capitães havia um pequeno aposento que só ficou visível devido à um dos disparos de canhão. Neste aposento havia dois esqueletos do que deviam ser sacerdotes. Ambos estavam dispostos de cada lado de um pequeno baú de madeira. Dentro deste baú havia um único objeto – um livro. Estava escrito em uma linguagem estranha e não despertou grande interesse.

Como foram os homens do Capitão Tingui que o encontraram nada mais justo que ficasse em seu navio. O capitão iria investigar seu conteúdo numa outra hora com a ajuda do clérigo da embarcação.

Mas aquela noite foi marcada pelos dedos do horror e do medo. A noite transcorreu em silêncio sem nenhum alarme, sem nenhum perigo, aparente pelo menos. Pelo menos aparente. Pesadelos correram pelos sonhos de muitos marujos. Nem os capitães saíram intocados. Clérigos acordaram no meio da noite e fizeram preces em silêncio rogando por ajuda de seus deuses.

Ao amanhecer tudo estava aparentemente normal. Mas se enganaram. Notaram que não havia movimentação de marujos no convés da embarcação do Capitão Tingui. Depois de muitas tentativas frustradas decidiram ir ver o que realmente estava acontecendo.

Os três capitães – Gares, o Corvo e Ross – junto de alguns marujos embarcaram no Vento Cortante. Ele estava completamente vazio, em seu convés. Nenhum sinal de qualquer marujo. Era um silêncio incômodo. Não haviam, também, sinais de violência ou briga. Apenas um ar gélido junto de uma sensação de escuridão na alma. O silêncio perturbador parecia calar até os sons do oceano. Rangeres da madeira se acomodando aqui e ali no balançar do navio deixavam o quadro ainda mais amedrontador.

Nenhum chamado foi respondido. Todos se entreolhavam enquanto pensavam no que poderia ter acontecido. Nos olhos de todos haviam mais dúvidas e medo do que qualquer outra coisa. Com um comando do Capitão Ross os marujos se espalharam pelo convés levando em mãos suas pistolas e espadas. Todos os cantos do convés superior foi vasculhado. Um dos subalternos de Ross decidiu averiguar a cabine do capitão aproximando-se da porta de entrada de sua cabine com cuidado redobrado. O susto foi imediato.

Ao segurar na maçaneta da cabine, após um clarão, o marujo foi jogado metros de distância enquanto gritava de forma horrenda. Segundo o próprio Gares, seu grito foi audível em todos os navios. O infeliz morreu instantes depois com sua face contorcida de dor enquanto marujos das outras embarcações se apinhavam nas amuradas tentando enxergar um pouco do que acontecia.

Com todos assustados e sem idéia do que acontecia Gares chamou um clérigo do Indomável às pressas e mais marujos bem armados. Ninguém se aproximou da porta da cabine do capitão Tingui enquanto o alvoroço só crescia nas outras embarcações.

Logo que o clérigo pousou seu pé no convés desfaleceu momentaneamente tendo de ser amparado pelos marujos de embarcavam junto. Logo que recobrou plenamente a consciência, com olhos assustados, revelou que sentira um enorme mal, sendo emanado pela embarcação, que o atingira. O clérigo realizou algumas preces de proteção e para afastar o mal. Após estudar o corpo do inafortunado e a porta da cabine do capitão ele revelou que efeitos mágicos muito fortes, embora não muito difíceis de serem quebrados, estavam presentes ali. Prontamente se colocou à desfazer tais sortilégios que mostraram-se muito mais resistentes do que imaginara. Mais de uma hora passou até um estalo denunciar que a porta estava aberta.

Assegurando não haver mais perigo o trio de capitães entrou no recinto e viu que não existia mais nada dentro da cabine. O ambiente estava impecavelmente vazio e muito frio. A luz, que entrava pelas grandes janelas traseiras da embarcação, deixava o aposento muito claro. No centro apenas o livro, aberto, displicentemente depositado no chão. De cada lado, também no chão, as vestes reconhecidamente pertencentes ao druida e ao clérigo do Vento Cortante. Uma fina camada de fuligem desenhava no chão o que parecia serem dois corpos desmanchados. Algo havia como que desintegrado os dois corpos. Em um canto, encolhido abraçando os próprios joelhos, estava Tingui.

Ele soluçava baixinho entrecortado por uma respiração chiada e fraca. Uma fina camada de gelo depositara-se sobre seu corpo nu e encolhido. Seus cabelos longos estava, em alguns pontos, quebradiços pelo frio. Ele murmurava algo incompreensível embora estivesse inconsciente ou em transe.

Todos se aproximaram de Tingui, sem tocá-lo, por precaução, até que o clérigo o examinasse. O medo levava à prudência e os acontecimentos ocorridos até aquele momento só pioravam os temores. Depois de ser constatado pelo clérigo que não haver problemas ou perigos Gares e Ross tentaram conversar com o amigo. Mas as palavras eram ditas inutilmente. Tingui não as escutava, permanecendo no mesmo estado de transe. O capitão Tingui foi levado à embarcação de Ross e recebeu cuidados por horas até abrir os olhos a primeira vez, embora sua consciência parecia ter fugido de seu corpo.

A embarcação foi amplamente inspecionada por todos os clérigos. O livro misterioso foi trancado em uma pequena arca de madeira magicamente preparada e lacrado de por trancas igualmente mágicas que retinham seu poder. Todos os clérigos afirmaram que qualquer coisa que tivesse causado o mau àquela embarcação, já não estava presente ou acordado, tendo sido, possivelmente, aprisionada na caixa juntamente com o livro.

Decidiram voltar à terra firma após uma reunião entre os capitães. Iriam averiguar com mais cuidado aquilo tudo que havia aocntecido. Ao mesmo tempo sabiam que pouco poderiam descobrir sobre aquele artefato sem ajuda mais especializada. Além disso, haviam perdido quase cem homens como que por magia e muitas famílias tinham de ser avisadas e consoladas. Iam retornar para casa depois de quase três meses. Depois daquele dia sombrio ansiavam pelo retorno.

As famílias dos marinheiros das três embarcações viviam juntas em Northun. Enquanto que a tripulação de Ross residia em uma ilha um pouco mais à oeste. Todos em Northun se conheciam e conheciam seus familiares. O trauma era visível em seus olhos. Não foram somente quase cem marujos perdidos, mas quase cem amigos e familiares.

O Corvo indicou alguns de seus marujos para levar o navio de Tingui até a vila costeira onde viviam para estudar o caso. O retorno seria rápido. Já estavam pensando em voltar para casa quando finalmente, ou infelizmente, cruzaram com aquele comboio de embarcações, e com o livro. Em cinco dias estariam aportando em casa. Apenas isso animava os corações.

Mas o caminho não foi calmo. E a viajem não foi tão rápida.

Naqueles dias tudo o que era imaginável aconteceu. Aquela rota, que era reconhecida por suas águas calmas e ventos garbosos, presenteou a frota de Ross por dias de calmaria desconcertante, onde nem a menor brisa soprava, e noites de tempestade. Os cinco dias se transformaram em dez de perturbadora jornada. Além disso, muitas mortes e desaparecimentos aconteceram nas quatro embarcações. Cada dia dois ou três marujos sucumbiam em mortes macabras ou simplesmente sumiam.

Quando finalmente avistaram a costa a alegria foi incontrolável. Todos ansiavam por desembarcar e ter o calor dos familiares novamente em seu peito, principalmente após esses dias negros. Todos desejavam a segurança de sua casa, dos seus.

E mesmo chegando à costa, onde estava a vila de Northun, não conseguiram se sentir seguros.

Incompreensivelmente a nau do capitão Ross encalhou num banco de areia que simplesmente não existia até dias atrás. O impacto foi tão grande que rompeu o casco de sua embarcação, da proa à popa, partindo-o em dois. Todos na embarcação foram pegos de surpresa. Em poucos minutos os restos do navio estavam quase que totalmente submersos. A tripulação tentava manter-se viva enquanto os olhares atônitos dos outros marujos procuravam cordas e botes para lançar ao mar para o salvamento.

E a desgraça não estava completa ainda. O sangue espalhado pela água atraiu uma quantidade de tubarões que nenhum daqueles lobos do mar jamais haviam visto juntos de uma só vez. Eles banqueteavam-se com a farta quantidade de marujos espalhados pela água. Para cada um que salvavam, outro era pego por um daqueles assassinos do oceano. Quase metade da tripulação sucumbiu. Da praia todos viam aquele horror entre prantos e gritos, paralisados.

Quando a tripulação chegou em terra descobriram que tudo era ainda muito pior. As mulheres e crianças, a maioria dos que moravam naquela vila, contaram que viveram um horror sem tamanho nos últimos dez dias. Os mesmos dez dias. Tudo começou com um incêndio no armazém que guardavam todas as provisões da vila. No segundo dia, e nos seguintes, incêndios aconteciam a todo o momento nas pequenas casas matando alguns de seus moradores. Uma estranha doença havia acometido muitos velhos e pequeninos recém-nascidos. Eles morriam em quantidade. A água dos poços haviam ficado impossíveis de beber. Além disso, na escuridão da noite, gritos prenunciavam sumiços estranhos. O cemitério da vila estava cheio de covas novas. Era um pesadelo em vida. Mesmo pequeno me recordo do horror daqueles dias. Passávamos as noites aglomerados nas casas maiores tentando nos proteger. Perdi muitos amigos e um irmão.

O Capitão Ross e os sobreviventes do Imperium resolveram retornar imediatamente para suas casas, na macabra expectativa de que o mesmo houvesse acometido seus familiares. Uma embarcação menor, que servia para a vila em seus afazeres, fora dada à eles para a jornada.

Em Northun, depois de uma reunião entre os mais velhos e os capitães, uma contagem demonstrou que todos os que morreram na vila eram parentes dos marujos mortos e sumidos nos últimos dias, desde os acontecimentos no Vento Cortante.

A única providência que poderiam assumir era tentar descobrir o que aquele maldito livro estava fazendo com eles, e manterem-se vivos até conseguir reverter o quer que estivesse acontecendo.

Todas as magias que pudessem proteger eram empregadas às pessoas daquela vila pelos clérigos dos navios. Batedores foram enviados para as vilas próximas à procura de quem pudesse ajudar. Dois dias após, e muitas mortes também, dois sacerdotes da Altiva chegaram à vila junto de sacerdotes menores.

Prontamente começaram a estudar o caso escutando cada uma das estórias contadas pelos marujos e moradores da vilas."

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