segunda-feira, 15 de abril de 2019

Pasión de las Pasiones - RPG sobre novelas latino-americanas, mas que requer cuidados

Pasión de las Pasiones
RPG sobre novelas latino-americanas,
mas que requer cuidados


Vamos concordar que podemos adaptar qualquer coisa para RPG. De um mundo distópico repleto de aliens à um ambiente de fantasia medieval, de um mundo repleto de super-heróis com suas capas até um mundo repleto de zumbis. Por isso não me surpreendi quando descobri Pasión de las Pasiones. Ele foi lançado em 2017 pela Magpie Games e criado por Brandon Leon-Gambetta. Como o próprio autor descreve logo nos agradecimentos, o jogo surgiu em um comentário despretensioso durante um episódio do seriado Jane the Virgin. De lá para cá ele foi tomando forma.

Por um lado uma ideia interessante e divertida que pode proporcionar uma experiência diferente para o grupo de jogadores. Por outro um limite de abordagem quanto aos seus arquétipos que podem, principalmente nos tempo atuais, ser mal utilizados sem o devido cuidado e maturidade. Vamos abordar ambos os aspectos.

Podemos começar dizendo que Pasión de las Pasiones é um hack para Powered by the Apocalipse, ou seja, se vale de sua mecânica para introduzir um tipo de jogo e cenário específicos, que neste caso é de uma novela latino-americana.

Drama, intrigas, mentiras e traição. As histórias de telenovelas mergulham o espectador profundamente nestas águas agitadas enquanto deslumbram com glamour e brilho. São histórias de amor, de luxúria, de ódio, de vingança. Histórias complicadas, tecidas com personagens eternamente à beira da felicidade ou do esquecimento, dando tudo para milhões de observadores ávidos pelo próximo mistério. Essas histórias capturam a imaginação dos espectadores e os mantêm conversando até a próxima noite em que podem voltar a mergulhar. Eles podem ser uma força para a mudança social ou simplesmente uma boa diversão dramática.”

Pasion de las Pasiones cria um cenário e emula a sensação de estarmos vivendo uma novela no melhor (e pior) estilo latino. Neste jogo você interpretará personagens típicos deste tipo de programa: amantes irredutíveis, vilões cruéis, gêmeos do mal e aqueles que tentam desesperadamente impedir que essa família se desmanche. Tudo exagerado, tudo passional, tudo no limite. É o jogo onde status e fracasso, amor e melancolia, violência e perdão, todos eles andam juntos. Nada de super-heróis, elfos, guerreiros espaciais ou magia. Apenas a dura realidade televisiva das 18 horas.


A versão que tenho é a ashcan (versão reduzida para divulgação), única até o momento. Pelo que pesquisei ainda não foi lançada uma versão definitiva. De qualquer forma ela serve muito bem para algumas horas de risadas e emoção. Temos nesta versão seis Playbooks. Cada um deles serve como o roteiro do personagem que cada jogador escolherá e interpretará:

La Belleza é a femme fatale ou conquistador típico deste tipo de novela;

El Caballero é um contraponto de La Belleza, mas é mais como o personagem carismático, idealista e ingênuo;

La Doña é o pai/mãe protetor, mas duro. Ela é projetada para controlar as ações de outros playbooks (infantis), mas também o tipo de personagem de longa duração que permanece em uma novela década após década;

La Empleada é a empregado(a), criado(a), o mordomo ou governanta, que trabalha na casa de La Doña. Esses personagens podem ser alguns dos mais simpáticos, mas também podem ter motivações secretas e uma agenda de interesses particulares;

El Gemelo é o gêmeo de algum dos personagens da novela. Ora, qual novela não tem esse famigerado vilão ou essa inesperada alma caridosa;

El Jefe não é um chefe bonzinho, mas sim um exigente e raivoso chefe.

Esses Playbooks servem como fichas de personagens com todos as informações que nortearão o jogador durante a sessão. Após escolherem qual cada jogador será, define-se (baseado nas opções ou indicações do Playbook) nome (nomes compostos e absurdos deveriam ser uma regra), visual, acessórios, dois relacionamentos (logicamente para criar triângulos amorosos) e dois movimentos. Por fim você responde a pergunta “This time on”, criando um enredo específico para seu personagem.

Diferente de outros jogos que se valem do sistema de regras do Powered by the Apocalipse, ele não adiciona ou subtrai atributos às jogadas de 2d6. Pasión usa apenas 2d6, mas ao fazer uma jogada de movimento (dentre os escolhidos previamente), o jogador recebe pergunta(s) e conforme a resposta recebe bônus às suas jogadas. Isso culmina que conforme o resultada da jogada o personagem tem respostas para questões específicas. Vamos usar como exemplo um dos movimentos do ‘Gêmeo’ chamado Story Spinner. Ele diz que:

“Quando você timidamente tenta aprender sobre alguém enquanto está fingindo ser seu irmão gêmeo, role com as perguntas:

- Eles amam seu gêmeo?
- Existe uma ampla distração?

Em um 7-9, mantenha 1. Em um 10+, mantenha 3. Gaste um por um para fazer qualquer uma dessas perguntas:

- Quando você e meu irmão(ã) gêmeo(a) dormiram juntos?
- Como você se sente sobre o meu irmão(ã) gêmeo(a)?
- O que você deve ao meu irmão(a) gêmeo(a)?
- Como eu poderia te deixar com raiva do meu irmão(a) gêmeo(a)?

Em uma falha, mantenha 1, mas seu gêmeo e seu alvo ganham 1 Leverage à você.”
[Leverage: medida de controle emocional do personagem. Permite que quem tenha esses pontos de Leverage possam influenciar resultados em jogadas contra você]

Assim a história está constantemente em andamento, com maior ou menor consequência ao personagem em questão.

O jogo possui sete movimentos básicos (como expressar seu amor apaixonadamente, acusar alguém de mentir ou mesmo enfrentar a morte cara a cara), quatro movimentos de flashback (que permitem influenciar e modificar plots), além dos movimentos específicos conforme cada personagem.


Mas isso não é tudo. Toda a novela que se preze tem um público fiel e apaixonado. Aquele sofá com cinco pessoas roendo as unhas à cada desgraça que acontece ou chorando à cada nova emoção. Esse sofá está no jogo e é interpretado também pelos jogadores. A Audiência, como é chamada no jogo, mostra sua apreciação ou desaprovação, concedendo ou não experiência aos personagens em cena. A qualquer momento do jogo, um jogador que não esteja em cena pode reagir como membro da audiência, baseando-se no Playbook do personagem em cena e conceder à ele Experiência. Esse processo, segundo o capítulo das regras, pode se originar de uma interpretação que passe pelo indicado no Playbook, ou como resultado de um movimento. Neste segundo caso deve haver um debate entre os jogadores com mediação do mestre para decisão final.

Morte? Claro que podem haver, mas normalmente o que aflige os personagens é o Stress como consequência negativa de movimentos falhos. Seu acúmulo pode levar à bônus negativos em suas jogadas ou positivos quando forem contra você. Se ultrapassar os sete pontos de stress o personagem tem o que o livro chama de Meltdown. Nesta situação você foi vencido pelo stress, onde você zera sua contagem e escolhe uma dentre três situações de jogo. Quanto à morte, ela existe, mas é pouco provável de acontecer.

O foco central aqui é montar um ambiente onde os jogadores se sintam realmente dentro de uma novela, principalmente levando à um tom anedótico (não pastelão) ou à um drama conflituoso e emotivo (não canastrão). Se o jogo for levado adiante com foco na diversão apenas e sem desvios, poderá ser uma grata surpresa.

Mas este RPG abre margem para alguns problemas e cuidados que devemos ter em mesa. Me refiro à que ele pode rapidamente, em mãos erradas, reforçar estereótipos latino-americanos. Não podemos nos esquecer que arquétipos usados de forma errada e no limite do contexto se tornam facilmente estereótipos. Vi esse debate em muitos artigos da comunidade rpgista latino-americana principalmente com relação ao mercado norte-americano. Embora o autor não tenha tido esse interesse quando o criou, visto a forma apaixonada com que trata o tema e suas entrevistas, jogadores sem o mesmo pudor podem guinar para sessões extremamente preocupantes. Ao mesmo tempo que muitos dos autores desses artigos jogaram, gostaram e o recomendaram, sempre deixaram a luz de alerta acessa.

Sabemos que as novelas são uma prática latino-americana comum (não exclusiva) e ocupam um espaço na memória afetiva de todos, principalmente dos imigrantes latinos. Também sabemos que os arquétipos de personagens clássicos dessas novelas são facilmente reconhecidos por nós e por ‘eles’, embora tenhamos interpretações e julgamentos diferentes. Com muita facilidade tal elemento pode servir de munição depreciativa e reforço xenofóbico em muitos ambientes e uma atenção deve ser dada tanto na condução do jogo quanto na ação dos jogadores (em mesa e em off) para que foquemos na diversão e não na depreciação. Há muitos exemplos de novelas latinas que partem do estereótipo para uma luta contra essa realidade, e não deixam de serem divertidas ou engraçadas. Tudo depende da condução do jogo pelo mestre e interesse dos jogadores.

Como brasileiros vemos estereótipos negativos presentes em nossas novelas disfarçados de arquétipos cotidianos e imutáveis e qualquer adaptação para a realidade do Brasil deve ser levada à cabo com cuidado redobrado.


Da mesma foram que Pasión de las Pasiones é um jogo divertido, muito bem bolado, e fácil de ser levado adiante ele deve ser utilizado com cuidado e foco para não reproduzir tais elementos. De forma séria, com jogadores empenhados, buscando a diversão e com algumas alterações aqui e ali, podemos ter um ótimo e divertido jogo em mãos. 

Um comentário:

Mike Wevanne disse...

A ideia parece interessante e divertida, para quem gosta do tema. De certa forma, lembrei do RPG "Primetime Adventures".