Pasión de las Pasiones
RPG sobre novelas
latino-americanas,
mas que requer cuidados
Vamos concordar que podemos
adaptar qualquer coisa para RPG. De um mundo distópico repleto de aliens à um ambiente
de fantasia medieval, de um mundo repleto de super-heróis com suas capas até um
mundo repleto de zumbis. Por isso não me surpreendi quando descobri Pasión de
las Pasiones. Ele foi lançado em 2017 pela Magpie Games e criado por Brandon
Leon-Gambetta. Como o próprio autor descreve logo nos agradecimentos, o jogo
surgiu em um comentário despretensioso durante um episódio do seriado Jane the
Virgin. De lá para cá ele foi tomando forma.
Por um lado uma ideia interessante
e divertida que pode proporcionar uma experiência diferente para o grupo de
jogadores. Por outro um limite de abordagem quanto aos seus arquétipos que
podem, principalmente nos tempo atuais, ser mal utilizados sem o devido cuidado
e maturidade. Vamos abordar ambos os aspectos.
Podemos começar dizendo que Pasión
de las Pasiones é um hack para Powered by the Apocalipse, ou seja, se vale de
sua mecânica para introduzir um tipo de jogo e cenário específicos, que neste
caso é de uma novela latino-americana.
“Drama,
intrigas, mentiras e traição. As histórias de telenovelas mergulham o
espectador profundamente nestas águas agitadas enquanto deslumbram com glamour
e brilho. São histórias de amor, de luxúria, de ódio, de vingança. Histórias
complicadas, tecidas com personagens eternamente à beira da felicidade ou do
esquecimento, dando tudo para milhões de observadores ávidos pelo próximo
mistério. Essas histórias capturam a imaginação dos espectadores e os mantêm
conversando até a próxima noite em que podem voltar a mergulhar. Eles podem ser
uma força para a mudança social ou simplesmente uma boa diversão dramática.”
Pasion de las Pasiones cria um
cenário e emula a sensação de estarmos vivendo uma novela no melhor (e pior)
estilo latino. Neste jogo você interpretará personagens típicos deste tipo de
programa: amantes irredutíveis, vilões cruéis, gêmeos do mal e aqueles que
tentam desesperadamente impedir que essa família se desmanche. Tudo exagerado,
tudo passional, tudo no limite. É o jogo onde status e fracasso, amor e
melancolia, violência e perdão, todos eles andam juntos. Nada de super-heróis,
elfos, guerreiros espaciais ou magia. Apenas a dura realidade televisiva das 18
horas.
A versão que tenho é a ashcan
(versão reduzida para divulgação), única até o momento. Pelo que pesquisei
ainda não foi lançada uma versão definitiva. De qualquer forma ela serve muito
bem para algumas horas de risadas e emoção. Temos nesta versão seis Playbooks.
Cada um deles serve como o roteiro do personagem que cada jogador escolherá e
interpretará:
La Belleza
é a femme fatale ou conquistador típico deste tipo de novela;
El Caballero
é um contraponto de La Belleza, mas é mais como o personagem carismático,
idealista e ingênuo;
La Doña
é o pai/mãe protetor, mas duro. Ela é projetada para controlar as ações de
outros playbooks (infantis), mas também o tipo de personagem de longa duração
que permanece em uma novela década após década;
La Empleada é
a empregado(a), criado(a), o mordomo ou governanta, que trabalha na casa de La
Doña. Esses personagens podem ser alguns dos mais simpáticos, mas também
podem ter motivações secretas e uma agenda de interesses particulares;
El Gemelo
é o gêmeo de algum dos personagens da novela. Ora, qual novela não tem esse
famigerado vilão ou essa inesperada alma caridosa;
El Jefe
não é um chefe bonzinho, mas sim um exigente e raivoso chefe.
Esses Playbooks servem como
fichas de personagens com todos as informações que nortearão o jogador durante
a sessão. Após escolherem qual cada jogador será, define-se (baseado nas opções
ou indicações do Playbook) nome (nomes compostos e absurdos deveriam ser uma
regra), visual, acessórios, dois relacionamentos (logicamente para criar
triângulos amorosos) e dois movimentos. Por fim você responde a pergunta “This
time on”, criando um enredo específico para seu personagem.
Diferente de outros jogos que
se valem do sistema de regras do Powered by the Apocalipse, ele não adiciona ou
subtrai atributos às jogadas de 2d6. Pasión usa apenas 2d6, mas ao fazer uma
jogada de movimento (dentre os escolhidos previamente), o jogador recebe
pergunta(s) e conforme a resposta recebe bônus às suas jogadas. Isso culmina
que conforme o resultada da jogada o personagem tem respostas para questões
específicas. Vamos usar como exemplo um dos movimentos do ‘Gêmeo’ chamado Story
Spinner. Ele diz que:
“Quando você timidamente tenta aprender sobre alguém
enquanto está fingindo ser seu irmão gêmeo, role com as perguntas:
- Eles amam seu gêmeo?
- Existe uma ampla distração?
Em um 7-9, mantenha 1. Em um 10+, mantenha 3.
Gaste um por um para fazer qualquer uma dessas perguntas:
- Quando você e meu irmão(ã) gêmeo(a) dormiram
juntos?
- Como você se sente sobre o meu irmão(ã) gêmeo(a)?
- O que você deve ao meu irmão(a) gêmeo(a)?
- Como eu poderia te deixar com raiva do meu irmão(a)
gêmeo(a)?
Em uma falha, mantenha 1, mas seu gêmeo e seu alvo
ganham 1 Leverage à você.”
[Leverage: medida de controle emocional do
personagem. Permite que quem tenha esses pontos de Leverage possam influenciar
resultados em jogadas contra você]
Assim a história está constantemente
em andamento, com maior ou menor consequência ao personagem em questão.
O jogo possui sete movimentos
básicos (como expressar seu amor
apaixonadamente, acusar alguém de mentir ou mesmo enfrentar a morte cara a cara), quatro movimentos de flashback (que
permitem influenciar e modificar plots), além dos movimentos específicos
conforme cada personagem.
Mas isso não é tudo. Toda a
novela que se preze tem um público fiel e apaixonado. Aquele sofá com cinco
pessoas roendo as unhas à cada desgraça que acontece ou chorando à cada nova
emoção. Esse sofá está no jogo e é interpretado também pelos jogadores. A
Audiência, como é chamada no jogo, mostra sua apreciação ou desaprovação,
concedendo ou não experiência aos personagens em cena. A qualquer momento do
jogo, um jogador que não esteja em cena pode reagir como membro da audiência,
baseando-se no Playbook do personagem em cena e conceder à ele Experiência.
Esse processo, segundo o capítulo das regras, pode se originar de uma
interpretação que passe pelo indicado no Playbook, ou como resultado de um
movimento. Neste segundo caso deve haver um debate entre os jogadores com
mediação do mestre para decisão final.
Morte? Claro que podem haver,
mas normalmente o que aflige os personagens é o Stress como consequência
negativa de movimentos falhos. Seu acúmulo pode levar à bônus negativos em suas
jogadas ou positivos quando forem contra você. Se ultrapassar os sete pontos de
stress o personagem tem o que o livro chama de Meltdown. Nesta situação você
foi vencido pelo stress, onde você zera sua contagem e escolhe uma dentre três situações
de jogo. Quanto à morte, ela existe, mas é pouco provável de acontecer.
O foco central aqui é montar um
ambiente onde os jogadores se sintam realmente dentro de uma novela, principalmente
levando à um tom anedótico (não pastelão) ou à um drama conflituoso e emotivo
(não canastrão). Se o jogo for levado adiante com foco na diversão apenas e sem
desvios, poderá ser uma grata surpresa.
Mas este RPG abre margem para
alguns problemas e cuidados que devemos ter em mesa. Me refiro à que ele pode
rapidamente, em mãos erradas, reforçar estereótipos latino-americanos. Não
podemos nos esquecer que arquétipos usados de forma errada e no limite do
contexto se tornam facilmente estereótipos. Vi esse debate em muitos artigos da
comunidade rpgista latino-americana principalmente com relação ao mercado norte-americano.
Embora o autor não tenha tido esse interesse quando o criou, visto a forma
apaixonada com que trata o tema e suas entrevistas, jogadores sem o mesmo pudor
podem guinar para sessões extremamente preocupantes. Ao mesmo tempo que muitos
dos autores desses artigos jogaram, gostaram e o recomendaram, sempre deixaram
a luz de alerta acessa.
Sabemos que as novelas são uma
prática latino-americana comum (não exclusiva) e ocupam um espaço na memória
afetiva de todos, principalmente dos imigrantes latinos. Também sabemos que os
arquétipos de personagens clássicos dessas novelas são facilmente reconhecidos
por nós e por ‘eles’, embora tenhamos interpretações e julgamentos diferentes.
Com muita facilidade tal elemento pode servir de munição depreciativa e reforço
xenofóbico em muitos ambientes e uma atenção deve ser dada tanto na condução do
jogo quanto na ação dos jogadores (em mesa e em off) para que foquemos na
diversão e não na depreciação. Há muitos exemplos de novelas latinas que partem do estereótipo para uma luta contra essa realidade, e não deixam de serem divertidas ou engraçadas. Tudo depende da condução do jogo pelo mestre e interesse dos jogadores.
Como brasileiros vemos estereótipos
negativos presentes em nossas novelas disfarçados de arquétipos cotidianos e
imutáveis e qualquer adaptação para a realidade do Brasil deve ser levada à
cabo com cuidado redobrado.
Da mesma foram que Pasión de
las Pasiones é um jogo divertido, muito bem bolado, e fácil de ser levado
adiante ele deve ser utilizado com cuidado e foco para não reproduzir tais
elementos. De forma séria, com jogadores empenhados, buscando a diversão e com
algumas alterações aqui e ali, podemos ter um ótimo e divertido jogo em mãos.
Um comentário:
A ideia parece interessante e divertida, para quem gosta do tema. De certa forma, lembrei do RPG "Primetime Adventures".
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