Resenha de Cultos
Inomináveis
RPG anunciado pela Redbox
Ontem tivemos mais um anúncio
bombástico de um lançamento da editor Redbox para o mercado brasileiro – Cultos
Inomináveis (Cultos Innombrables), da editora espanhola Nosolorol, criação de
Manuel Suaeiro, Ricardo Dorda, Luis Barbero e Jokin García. Nem preciso dizer o
quanto isso me agradou e não quis perder tempo em contribuir para que esse
lançamento encontre terreno fértil por aqui. Deste modo trago uma resenha da
obra baseada em sua edição espanhola original, acreditando que a obra que a
Redbox nos entregará será nos mesmos moldes e qualidade.
Vamos começar pelo conceito
básico. Cultos Inomináveis é um jogo de RPG dentro de uma temática de horror
lovecraftiano onde os jogadores fazem parte de um culto secreto em um mundo análogo
ao nosso onde a existência dos ‘Mitos’, ou a Verdade, é conhecida em certo
ponto pelas pessoas.
Muito de um jogo de RPG de
horror vem de dois pontos – cumplicidade dos jogadores e ambientação. Quanto a
cumplicidade dos jogadores autores e mestres não podem fazer muito, mas quanto
à criação de uma ambiente apropriado a conversa é outra. O livro Cultos
Inomináveis consegue criar uma ambientação e atmosfera únicas. Percebemos ao longo
da leitura um cuidado para que cada detalhe direcione o leitor para o clima
desejado, seja por imagens escolhidas e trabalhadas impecavelmente, seja pela diagramação
mesclando um visual convencional com elementos que lembram um diário de repleto
de recortes, seja pelo texto. Tudo é pensado no clima desejado. No início de
cada um dos nove capítulos temos pequenos contos de quatro páginas, chamados de
Relatos) de autoria de Rosendo Chas Patier misturando o assunto que será visto
no capítulo com o muito do clima que esse tipo de temática trabalha. Em muitos
casos esses contos podem ser uma aula de como mestrar ou interpretar dentro do
cenário, até por que temos peculiaridades únicas aqui.
Os personagens neste RPG são
diferentes do que vemos em muitos jogos com a mesma temática. Ao invés de pesquisadores,
incrédulos investigadores ou combatentes alienados da existência da ‘verdade’,
temos verdadeiros cultistas que têm conhecimento dos mitos de Cthulhu e detém
algum conhecimento sobre eles e pretendem tirar algum benefício ou vantagem disso,
seja para sucesso, poder, riqueza, aceitação social ou tantas outras coisas que
possam servir de motivação para este personagem.
Em cerca de quarenta páginas o
livro apresenta o que precisamos saber sobre o sistema, primeiramente ensinando
como criar o personagem e logo depois delineando a mecânica do jogo.
Personagem
A criação de personagens está
dentro do sistema Hitos próprio da editora Nosolorol e pode fazer alguns
acharem aspectos semelhantes à FATE nesse ponto inicial. A criação é muito
simples e intuitiva e rapidamente monta-se um interessante personagem. Primeiramente
escolhe-se um conceito, algo como um elemento central que definirá seu
personagem. O livro dá uma explicação muito interessante – “é como o descreverá
se só puder utilizar duas ou três palavras, ou como te referiria à ele se ele
fosse alguém conhecido, mas sem nome”. Conceito escolhido, distribuímos 20
pontos (de 1 a 10) entre quatro características – Força, Reflexo, Vontade e
Inteligência – e que devem ser acompanhados de um recurso descritivo criado
pelo jogador. É uma sacada muito boa. Estamos acostumados à simplesmente
graduar um atributo e entender que todos aqueles com o mesmo valor no mesmo
atributo terão as mesmas performances. Errado. Como o recurso narrativo um
personagem com Reflexos 5 pode ter um descritor ‘Felino’, enquanto outro
personagem também com Reflexos 5 pode ter um descritor ‘Boa pontaria’ (exemplos
tirados do livro). Isso faz como que consigamos, por uma lado dar um tempero
único ao nosso personagem, por outro criar um diferenciação saudável entre os
personagens. Esses recursos narrativos podem ser positivos ou negativos
conforme a graduação da característica. Uma Inteligência baixa pode ter o
recurso narrativo “Maniático” enquanto uma Força baixa pode ter o recurso
narrativo “Delicada” (exemplos tirados do livro).
Depois disso ainda temos mais
três elementos cruciais para os personagens. Escolhemos quatro Hitos (poderia
ser traduzido como marcos) criados por nós que servem para descrever a vida do
personagem e entender como ele chegou até ali. São frases descritivas e curtas tais
como “pertence à uma longa linhagem de policiais” ou “seu primeiro assassinato
não lhe causou qualquer emoção” ou ainda “sua mãe morreu em estranhas
circunstâncias”. Então distribuímos 40 pontos (de 1 a 10) em Perícias à nossa
escolha dentro do aspecto do nosso personagem. Não temos uma lista fria e
delimitada de perícias, mas 8 tipos de perícias onde devemos escolher um
aspecto para cada um desses tipos. Além disso, esses pontos também são usados
para nas habilidades mágicas (as magias que estão no capítulo 7). Por exemplo,
um dos personagens de exemplo do livro tem no tipo combate a perícia Pouca Experiência
Militar e no tipo cultura a perícia Ávido Leitor 7, enquanto outro tem no tipo combate
a perícia Machete 6 e em cultura tem a perícia Autodidata 3. Isso amplia em
muito as possibilidades de uso de habilidades durante o jogo, já que nossa
criatividade e bom senso são nossos limites.
Por fim temos Pontos de Drama e
Complicações. O primeiro serve como um referencial de nível do personagem e
que, entre outras coisas, permite alguma ingerência sobre a história. Já Complicação
seria uma frase que represente um aspecto negativo do personagem, algo como: “precisa
ter sempre a última palavra” ou “sua prepotência faz tratar a todos como
crianças”.
Sistema
O sistema Hitos se baseia em
uma única mecânica para determinar o resultado das ações. Ele usa
Característica + Perícia + 3d10 (escolhendo o valor do dado conforme a
dificuldade) em comparação à um fator de dificuldade (dentre cinco opções de 10
a 30). Para ações fáceis usamos o maior valor dentre os dados, para ações
normais usamos o valor intermediário dos dados e para ações difíceis usamos o
menor valor dos dados. Para tudo se usará essa mecânica.
Um acréscimo muito interessante
aqui é o uso de Aspectos. Aspectos são quaisquer frases ou expressões usadas
para definir nosso personagem – do recurso narrativo dos atributos às
complicações. Esses aspectos podem (e devem) ser ativados durante a aventura
contribuindo ou modificando a história. Para eles serem ativados temos três necessidades:
que ele tenha sentido no que o jogador queira fazer, que se encaixe na atual
situação dramática do jogo e que o jogador gaste 1 ponto dramático.
Eventos sobrenaturais (como
magia ou criaturas, entre outras coisas) testam a estabilidade mental do
personagem (seu valor é Vontade + metade do valor de Inteligência). Contatos
com esses elementos sobrenaturais causam reações no personagem, gerando perda
de sanidade e crescentes graus dentre um dos três aspectos: Alterado,
Transtornado ou Enlouquecido. Isso culmina com a perda da estabilidade mental
do personagem.
É claramente um sistema simples
e de fácil resolução, como adequada participação e interferência do jogador,
tudo usando como cerne os aspectos do personagem em benefício da história.
Cenário
Os três capítulos seguintes –
Ambientação, Criaturas e Cultos -, cada um com seu foco, se centram em todos os
elementos para criar um ambiente propício para que a aventura aconteça e tenha
peso. Centrado no mundo concebido por HP Lovecraft o capítulo da ambientação
nos apresenta todos os aspectos que o compõe. Centrando boa parte dele no mitos
e no conhecimento acerca deles, temos aqui elementos para entender como o mundo
em si funciona neste cenário, mas principalmente o que há além deste mundo e
como e onde eles se tocam, com apresentações claras e inebriantes das terras
dos sonhos. Ao fim a riquíssima lista de rumores é um prato cheio para um sem
número de campanhas.
O capítulo das criaturas é uma benção
em dois sentidos. Primeiro por ter uma vasta galeria de opções principalmente
para aqueles que não estão acostumados com esta natureza de RPG. Em segundo
lugar pela clareza de apresentação das informações. Nada de conhecimento
enciclopédico e vasto. A métrica é sempre a mesma. Em uma única página toda a
informação de forma clara e direta, não simplista, mas enxuta e acessível com
todas as informações que realmente são necessárias em jogo, seguido de uma
imagem belíssima de páginas inteira.
O terceiro capítulo dessa
tríade de ambientação tem relação com os cultos. Aqui temos em cerca de vinte
páginas um ‘faça você mesmo o seu culto’. Sendo o foco central de todo o jogo
os cultos, eles ganham mais tempero quando são reflexo dos jogadores que o
estão vivenciando e seguem uma lógica que perpassa por todo o livro: “a verdade
pode ser usada para propósitos muito diferentes por grupos muito diferentes”. O
culto, reflexo material da verdade que um grupo de pessoas alcançou,
estrutura-se de forma a representar o interesse do grupo, de acadêmicos excêntricos
interessados pelo ocultismo à seguidores de um visionário desaparecido até uma típica
família americana unida pela prática do canibalismo. Todos os elementos
conceituais ou de regra são apresentados aqui de forma clara e compreensível.
Magias
As magias são o sétimo capítulo
e poderíamos dizer que tem mais relação com os personagens e sua construção,
mas na verdade ela é parte integrante do cenário... ora, um mundo lovecraftiano
sem magia é quase nada! As magias são entendidas como perícias de manipulação
da realidade e por isso chamadas de perícias sobrenaturais. Enquanto nas
perícias temos uma para cada tipo, podemos ter mais do que apenas uma magia
para nosso personagem, embora isso possa fragmentar demais os pontos. Temos
três “graus” para uso de magias representando o quanto essa magia manipulou a
realidade: menor, intermediário e maior. O uso de magias também implica em um
efeito nocivo ao personagem e conforme o grau de sua magia gerará um
determinado grau de efeito nocivo. Assim, abusar da magia é um caminho sem
volta para a sanidade. Cada uso será mais difícil do que o anterior, e poderá
gerar uma maior perda de estabilidade (tanto naqueles que o usam quanto
naqueles que apenas vêem a magia) e terá um efeito mais notável em nossa
realidade. A mecânica do uso das magias frente à degeneração da
estabilidade mental do personagem, nos levará ao mecanismo que com mais degeneração,
menos perda de estabilidade terá o personagem, o que nos leva a outra das
principais características do jogo: o personagem menos humano, mais poderoso
ele se tornará. Quanto mais na beira do abismo, mas poderoso ele será. A
tentação do poder corrompendo lentamente o personagem.
Assim como as perícias, onde o
jogador literalmente a cria dentro de um dos tipos de habilidades, as magias
são também criadas, tendo o mestre como árbitro de sua conveniência ou não no
jogo: “Cada perícia sobrenatural deve ser escolhida com cuidado e seus
possíveis efeitos acordados com o mestre, que é quem tem a última palavra sobre
sua conveniência. A perícia [magia] deve ter um caráter específico suficiente
para não ser uma caixa na qual qualquer efeito se encaixe, além de ter sua
própria particularidade idiossincrática, mas ao mesmo tempo deve ser flexível o
suficiente para que possa ser usado de maneiras diferentes durante o jogo”. Na
dúvida, o final do capítulo possui muitos exemplos de magias prontas, seja para
uso direto (que recomendo para os iniciantes) ou com base para construir as
suas próprias magias.
Mestre
O oitavo capítulo é aquele que
todo mestre precisa dar uma olhada atenta quando se aventura em um jogo cuja
natureza não esteja acostumado. Levar adiante uma aventura de horror
lovecraftiano não é tarefa difícil, mas tem suas peculiaridades. Ele trás uma
série de informações de criação e condução de aventuras de horror, como lidar
com personagens iniciantes no tipo de aventura, interpretação de NPCs, como aplicar
as regras e de que forma ter autoridade narrativa aliada à cumplicidade narrativa
dos jogadores, como auxiliar os jogadores e principalmente, como manter a
ambientação e clima da campanha.
O décimo capítulo contém duas aventuras
prontas chamadas A Conspiração Luveh-Kerapf e Tua Dor é sua Oferta. As duas
aventuras compreendem dois aspectos introdutórios de jogadores. A primeira tem
personagens que ainda não fazem parte de um culto e pode servir de ponto de
partida para qualquer campanha que o mestre deseje. A segunda tem personagens
já inseridos em um culto. Ambas possuem elementos que servirão para testar e
exercitas todos os aspectos do jogo e de sua condução.
Por fim, e para não deixar
passar em branco algumas palavras da arte interna do livro. Borja Pindado
Arribas e Marga F. Doinare nos presenteiam com ilustrações impecáveis e
captando todo o estilo de um cenário como este pede. Nada exagerado ou fora de
contexto, temos alternância entre ilustrações belíssimas e elementos imitando
um diário que deixam o livro como um todo com um aspecto totalmente concatenado
com uma obra de horror lovecraftiano.
A Verdade
O resultado final de Cultos
Inomináveis é um RPG sólido que foge do simplismo que o senso comum dos jogos
baseados em Lovecraft acaba nos arrastando. Sua abordagem nova e original é um
colírio para quem é fã de longa data da temática, e uma agradável surpresa para
é iniciante neste universo. Ele tem a medida certa, sob a tutela de jogadores
comprometidos, de oferecer uma experiência nova no que tange à aventuras de
horror. O elemento da perturbação crescente em paralelo ao crescente poder dos
personagens pode levar a situações de interpretação que outros RPGs não
previram. Se o grupo como um todo - mestre e jogadores - souberem equilibrar a
degeneração da sanidade pelo sobrenatural (para que não se torne banalizado) e
os momentos de ação, o jogo será uma experiência gratificante.
Este é mais um passo firme da
Redbox em sua caminhada como grande editora de RPG do Brasil. Apostar em uma
obra como Cultos Inomináveis demonstra sua segurança e olhar visionário em um
mercado crescente e crítico, como o nosso está se tornando. Com os estrondosos
lançamentos para Old Dragon, com Legião, e a importação de grandes obras de RPG
como esta e Blades in the Dark, só posso dizer que estou cada vez mais ansioso
com o que virá pela frente com o selo deles.
4 comentários:
Que resenha completa! Como sempre, na verdade ^^. Parabéns, João!
Esse rpg vou comprar com certeza.
O primeiro livro do tema que realmente me despertou interesse em jogar e quem sabe,mestrar!
Espero que a editora traga os outros livros da Nosolorol,como o Hitos Livro Básico e o Plenilunio.Esses merecem!
adorei a resenha e fiquei interessado pelo livro mais quando fui procurar para compra não achei, quando lança
Ainda não tem data, mas será pela Redbox em breve
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