sábado, 27 de abril de 2019

Resenha de Cultos Inomináveis - RPG anunciado pela Redbox

Resenha de Cultos Inomináveis
RPG anunciado pela Redbox


Ontem tivemos mais um anúncio bombástico de um lançamento da editor Redbox para o mercado brasileiro – Cultos Inomináveis (Cultos Innombrables), da editora espanhola Nosolorol, criação de Manuel Suaeiro, Ricardo Dorda, Luis Barbero e Jokin García. Nem preciso dizer o quanto isso me agradou e não quis perder tempo em contribuir para que esse lançamento encontre terreno fértil por aqui. Deste modo trago uma resenha da obra baseada em sua edição espanhola original, acreditando que a obra que a Redbox nos entregará será nos mesmos moldes e qualidade.

Vamos começar pelo conceito básico. Cultos Inomináveis é um jogo de RPG dentro de uma temática de horror lovecraftiano onde os jogadores fazem parte de um culto secreto em um mundo análogo ao nosso onde a existência dos ‘Mitos’, ou a Verdade, é conhecida em certo ponto pelas pessoas.

Muito de um jogo de RPG de horror vem de dois pontos – cumplicidade dos jogadores e ambientação. Quanto a cumplicidade dos jogadores autores e mestres não podem fazer muito, mas quanto à criação de uma ambiente apropriado a conversa é outra. O livro Cultos Inomináveis consegue criar uma ambientação e atmosfera únicas. Percebemos ao longo da leitura um cuidado para que cada detalhe direcione o leitor para o clima desejado, seja por imagens escolhidas e trabalhadas impecavelmente, seja pela diagramação mesclando um visual convencional com elementos que lembram um diário de repleto de recortes, seja pelo texto. Tudo é pensado no clima desejado. No início de cada um dos nove capítulos temos pequenos contos de quatro páginas, chamados de Relatos) de autoria de Rosendo Chas Patier misturando o assunto que será visto no capítulo com o muito do clima que esse tipo de temática trabalha. Em muitos casos esses contos podem ser uma aula de como mestrar ou interpretar dentro do cenário, até por que temos peculiaridades únicas aqui.


Os personagens neste RPG são diferentes do que vemos em muitos jogos com a mesma temática. Ao invés de pesquisadores, incrédulos investigadores ou combatentes alienados da existência da ‘verdade’, temos verdadeiros cultistas que têm conhecimento dos mitos de Cthulhu e detém algum conhecimento sobre eles e pretendem tirar algum benefício ou vantagem disso, seja para sucesso, poder, riqueza, aceitação social ou tantas outras coisas que possam servir de motivação para este personagem.

Em cerca de quarenta páginas o livro apresenta o que precisamos saber sobre o sistema, primeiramente ensinando como criar o personagem e logo depois delineando a mecânica do jogo.

Personagem
A criação de personagens está dentro do sistema Hitos próprio da editora Nosolorol e pode fazer alguns acharem aspectos semelhantes à FATE nesse ponto inicial. A criação é muito simples e intuitiva e rapidamente monta-se um interessante personagem. Primeiramente escolhe-se um conceito, algo como um elemento central que definirá seu personagem. O livro dá uma explicação muito interessante – “é como o descreverá se só puder utilizar duas ou três palavras, ou como te referiria à ele se ele fosse alguém conhecido, mas sem nome”. Conceito escolhido, distribuímos 20 pontos (de 1 a 10) entre quatro características – Força, Reflexo, Vontade e Inteligência – e que devem ser acompanhados de um recurso descritivo criado pelo jogador. É uma sacada muito boa. Estamos acostumados à simplesmente graduar um atributo e entender que todos aqueles com o mesmo valor no mesmo atributo terão as mesmas performances. Errado. Como o recurso narrativo um personagem com Reflexos 5 pode ter um descritor ‘Felino’, enquanto outro personagem também com Reflexos 5 pode ter um descritor ‘Boa pontaria’ (exemplos tirados do livro). Isso faz como que consigamos, por uma lado dar um tempero único ao nosso personagem, por outro criar um diferenciação saudável entre os personagens. Esses recursos narrativos podem ser positivos ou negativos conforme a graduação da característica. Uma Inteligência baixa pode ter o recurso narrativo “Maniático” enquanto uma Força baixa pode ter o recurso narrativo “Delicada” (exemplos tirados do livro).


Depois disso ainda temos mais três elementos cruciais para os personagens. Escolhemos quatro Hitos (poderia ser traduzido como marcos) criados por nós que servem para descrever a vida do personagem e entender como ele chegou até ali. São frases descritivas e curtas tais como “pertence à uma longa linhagem de policiais” ou “seu primeiro assassinato não lhe causou qualquer emoção” ou ainda “sua mãe morreu em estranhas circunstâncias”. Então distribuímos 40 pontos (de 1 a 10) em Perícias à nossa escolha dentro do aspecto do nosso personagem. Não temos uma lista fria e delimitada de perícias, mas 8 tipos de perícias onde devemos escolher um aspecto para cada um desses tipos. Além disso, esses pontos também são usados para nas habilidades mágicas (as magias que estão no capítulo 7). Por exemplo, um dos personagens de exemplo do livro tem no tipo combate a perícia Pouca Experiência Militar e no tipo cultura a perícia Ávido Leitor 7, enquanto outro tem no tipo combate a perícia Machete 6 e em cultura tem a perícia Autodidata 3. Isso amplia em muito as possibilidades de uso de habilidades durante o jogo, já que nossa criatividade e bom senso são nossos limites.

Por fim temos Pontos de Drama e Complicações. O primeiro serve como um referencial de nível do personagem e que, entre outras coisas, permite alguma ingerência sobre a história. Já Complicação seria uma frase que represente um aspecto negativo do personagem, algo como: “precisa ter sempre a última palavra” ou “sua prepotência faz tratar a todos como crianças”.



Sistema
O sistema Hitos se baseia em uma única mecânica para determinar o resultado das ações. Ele usa Característica + Perícia + 3d10 (escolhendo o valor do dado conforme a dificuldade) em comparação à um fator de dificuldade (dentre cinco opções de 10 a 30). Para ações fáceis usamos o maior valor dentre os dados, para ações normais usamos o valor intermediário dos dados e para ações difíceis usamos o menor valor dos dados. Para tudo se usará essa mecânica.

Um acréscimo muito interessante aqui é o uso de Aspectos. Aspectos são quaisquer frases ou expressões usadas para definir nosso personagem – do recurso narrativo dos atributos às complicações. Esses aspectos podem (e devem) ser ativados durante a aventura contribuindo ou modificando a história. Para eles serem ativados temos três necessidades: que ele tenha sentido no que o jogador queira fazer, que se encaixe na atual situação dramática do jogo e que o jogador gaste 1 ponto dramático.

Eventos sobrenaturais (como magia ou criaturas, entre outras coisas) testam a estabilidade mental do personagem (seu valor é Vontade + metade do valor de Inteligência). Contatos com esses elementos sobrenaturais causam reações no personagem, gerando perda de sanidade e crescentes graus dentre um dos três aspectos: Alterado, Transtornado ou Enlouquecido. Isso culmina com a perda da estabilidade mental do personagem.

É claramente um sistema simples e de fácil resolução, como adequada participação e interferência do jogador, tudo usando como cerne os aspectos do personagem em benefício da história.



Cenário
Os três capítulos seguintes – Ambientação, Criaturas e Cultos -, cada um com seu foco, se centram em todos os elementos para criar um ambiente propício para que a aventura aconteça e tenha peso. Centrado no mundo concebido por HP Lovecraft o capítulo da ambientação nos apresenta todos os aspectos que o compõe. Centrando boa parte dele no mitos e no conhecimento acerca deles, temos aqui elementos para entender como o mundo em si funciona neste cenário, mas principalmente o que há além deste mundo e como e onde eles se tocam, com apresentações claras e inebriantes das terras dos sonhos. Ao fim a riquíssima lista de rumores é um prato cheio para um sem número de campanhas.

O capítulo das criaturas é uma benção em dois sentidos. Primeiro por ter uma vasta galeria de opções principalmente para aqueles que não estão acostumados com esta natureza de RPG. Em segundo lugar pela clareza de apresentação das informações. Nada de conhecimento enciclopédico e vasto. A métrica é sempre a mesma. Em uma única página toda a informação de forma clara e direta, não simplista, mas enxuta e acessível com todas as informações que realmente são necessárias em jogo, seguido de uma imagem belíssima de páginas inteira.

O terceiro capítulo dessa tríade de ambientação tem relação com os cultos. Aqui temos em cerca de vinte páginas um ‘faça você mesmo o seu culto’. Sendo o foco central de todo o jogo os cultos, eles ganham mais tempero quando são reflexo dos jogadores que o estão vivenciando e seguem uma lógica que perpassa por todo o livro: “a verdade pode ser usada para propósitos muito diferentes por grupos muito diferentes”. O culto, reflexo material da verdade que um grupo de pessoas alcançou, estrutura-se de forma a representar o interesse do grupo, de acadêmicos excêntricos interessados pelo ocultismo à seguidores de um visionário desaparecido até uma típica família americana unida pela prática do canibalismo. Todos os elementos conceituais ou de regra são apresentados aqui de forma clara e compreensível.



Magias
As magias são o sétimo capítulo e poderíamos dizer que tem mais relação com os personagens e sua construção, mas na verdade ela é parte integrante do cenário... ora, um mundo lovecraftiano sem magia é quase nada! As magias são entendidas como perícias de manipulação da realidade e por isso chamadas de perícias sobrenaturais. Enquanto nas perícias temos uma para cada tipo, podemos ter mais do que apenas uma magia para nosso personagem, embora isso possa fragmentar demais os pontos. Temos três “graus” para uso de magias representando o quanto essa magia manipulou a realidade: menor, intermediário e maior. O uso de magias também implica em um efeito nocivo ao personagem e conforme o grau de sua magia gerará um determinado grau de efeito nocivo. Assim, abusar da magia é um caminho sem volta para a sanidade. Cada uso será mais difícil do que o anterior, e poderá gerar uma maior perda de estabilidade (tanto naqueles que o usam quanto naqueles que apenas vêem a magia) e terá um efeito mais notável em nossa realidade.  A mecânica do uso das magias frente à degeneração da estabilidade mental do personagem, nos levará ao mecanismo que com mais degeneração, menos perda de estabilidade terá o personagem, o que nos leva a outra das principais características do jogo: o personagem menos humano, mais poderoso ele se tornará. Quanto mais na beira do abismo, mas poderoso ele será. A tentação do poder corrompendo lentamente o personagem.

Assim como as perícias, onde o jogador literalmente a cria dentro de um dos tipos de habilidades, as magias são também criadas, tendo o mestre como árbitro de sua conveniência ou não no jogo: “Cada perícia sobrenatural deve ser escolhida com cuidado e seus possíveis efeitos acordados com o mestre, que é quem tem a última palavra sobre sua conveniência. A perícia [magia] deve ter um caráter específico suficiente para não ser uma caixa na qual qualquer efeito se encaixe, além de ter sua própria particularidade idiossincrática, mas ao mesmo tempo deve ser flexível o suficiente para que possa ser usado de maneiras diferentes durante o jogo”. Na dúvida, o final do capítulo possui muitos exemplos de magias prontas, seja para uso direto (que recomendo para os iniciantes) ou com base para construir as suas próprias magias.



Mestre
O oitavo capítulo é aquele que todo mestre precisa dar uma olhada atenta quando se aventura em um jogo cuja natureza não esteja acostumado. Levar adiante uma aventura de horror lovecraftiano não é tarefa difícil, mas tem suas peculiaridades. Ele trás uma série de informações de criação e condução de aventuras de horror, como lidar com personagens iniciantes no tipo de aventura, interpretação de NPCs, como aplicar as regras e de que forma ter autoridade narrativa aliada à cumplicidade narrativa dos jogadores, como auxiliar os jogadores e principalmente, como manter a ambientação e clima da campanha.

O décimo capítulo contém duas aventuras prontas chamadas A Conspiração Luveh-Kerapf e Tua Dor é sua Oferta. As duas aventuras compreendem dois aspectos introdutórios de jogadores. A primeira tem personagens que ainda não fazem parte de um culto e pode servir de ponto de partida para qualquer campanha que o mestre deseje. A segunda tem personagens já inseridos em um culto. Ambas possuem elementos que servirão para testar e exercitas todos os aspectos do jogo e de sua condução.

Por fim, e para não deixar passar em branco algumas palavras da arte interna do livro. Borja Pindado Arribas e Marga F. Doinare nos presenteiam com ilustrações impecáveis e captando todo o estilo de um cenário como este pede. Nada exagerado ou fora de contexto, temos alternância entre ilustrações belíssimas e elementos imitando um diário que deixam o livro como um todo com um aspecto totalmente concatenado com uma obra de horror lovecraftiano.

A Verdade
O resultado final de Cultos Inomináveis é um RPG sólido que foge do simplismo que o senso comum dos jogos baseados em Lovecraft acaba nos arrastando. Sua abordagem nova e original é um colírio para quem é fã de longa data da temática, e uma agradável surpresa para é iniciante neste universo. Ele tem a medida certa, sob a tutela de jogadores comprometidos, de oferecer uma experiência nova no que tange à aventuras de horror. O elemento da perturbação crescente em paralelo ao crescente poder dos personagens pode levar a situações de interpretação que outros RPGs não previram. Se o grupo como um todo - mestre e jogadores - souberem equilibrar a degeneração da sanidade pelo sobrenatural (para que não se torne banalizado) e os momentos de ação, o jogo será uma experiência gratificante.


Este é mais um passo firme da Redbox em sua caminhada como grande editora de RPG do Brasil. Apostar em uma obra como Cultos Inomináveis demonstra sua segurança e olhar visionário em um mercado crescente e crítico, como o nosso está se tornando. Com os estrondosos lançamentos para Old Dragon, com Legião, e a importação de grandes obras de RPG como esta e Blades in the Dark, só posso dizer que estou cada vez mais ansioso com o que virá pela frente com o selo deles.


4 comentários:

F. P. Andrade disse...

Que resenha completa! Como sempre, na verdade ^^. Parabéns, João!
Esse rpg vou comprar com certeza.

Alvenaharr disse...

O primeiro livro do tema que realmente me despertou interesse em jogar e quem sabe,mestrar!
Espero que a editora traga os outros livros da Nosolorol,como o Hitos Livro Básico e o Plenilunio.Esses merecem!

Raphael disse...

adorei a resenha e fiquei interessado pelo livro mais quando fui procurar para compra não achei, quando lança

João Brasil disse...

Ainda não tem data, mas será pela Redbox em breve