sábado, 18 de abril de 2020

Uma História para Starfinder - Sobrevivência Incerta - Capítulo 5


Uma História para Starfinder
Sobrevivência Incerta

Capítulo 5
Aproximar-se da estação de Absalom traz dois sentimentos contraditórios para qualquer um. Por um lado é sempre muito bom aportar naquela enorme massa metálica pairando no espaço, repleta de recursos e possibilidades. Por outro lado é um verdadeiro inferno realizar a aproximação.

O motivo é a Armada.

A Armada é como todos chamam a gigantesca massa de espaçonaves de todos os tipos, tamanhos e procedências que orbitam a estação. Se a população dentro da estação é enorme, a população da Armada não fica atrás. Ela mais parece uma enorme cidade que se move lentamente, com suas peças trocando de lugar conforme a necessidade ou desejo. Tudo pode ser encontrado ali, de naves-templo à verdadeiras academias, de antros de promiscuidade à mercadores sagazes. Este enxame é relativamente permanente, com chegadas e partidas de alguns de seus membros de tempos em tempos. Ficar ali, nas proximidades de Absalom, não é mero oportunismo financeiro. Estar ali lhes traz um status semelhante à de ser nativo da estação... e isto é muito bom.

Mas este enxame estático não é por si só o problema. O inferno se cria com vai e vem de milhares de naves indo e vindo de todos os pontos possíveis da Armada. Somado à isso temos todo o tipo de naves chegando e partindo. Das inúmeras e pequenas corredoras chegando com seus tripulantes solitários às naves exploradoras próprias para viagens médias com grupos maiores, dos grandes transportes trazendo turistas com recursos de sobra à gigantescos cargueiros pesados. Em resumo, um inferno.

Nessas horas a capitã Huaa agradecia por não ter que fazer a aproximação da Icarus até uma das centenas de plataformas de pouso, em um dos vários braços da estação. Kroan, o responsável pela pilotagem, divertia-se com aquilo e ela realmente não entendia como. Desde que ele se juntara à sua tripulação, um ano padrão e meio atrás, ela nunca entendeu como alguém tão novo possua tamanha perícia para aquela tarefa. E pior, como alguém conseguia se divertir com aquilo. 

À frente da Icarus, Sakesh conduzia a Nymbus bem próxima e lenta para que conseguissem aportar em locais próximos. Se perder em meio à Armada era fácil e, dentro da estação, procurar o espaçoporto correto era ainda pior.

Por mais de uma vez precisaram desviar às pressas ou de uma nave minúscula e descuidada que cruzava em sua frente como se sua vida dependesse disso, ou de algum gigante transportador de Aballon. O caminho sempre era lento e complicado, mas no final sempre chegavam ao seu destino.

Conforme se aproximavam, o contato dos controladores da estação era realizado para averiguar os recém chegados e receber seus códigos de entrada e diretrizes de permanência. Estes códigos eram como um cartão de visitas mostrando quem eram, o que faziam e como tinham sido suas últimas visitas à Absalom. Não que as informações necessariamente fossem verdadeiras, mas ainda assim era uma espécie de controle.

Os gigantescos braços da estação possuíam centenas de docas de todos os tamanhos e com todas as funções. Transportes maiores acoplavam em setores específicos com plataformas de embarque de passageiros ou carga. Já as naves menores, quando autorizadas, pousavam em docas que serviam de hangares internos. Como tudo em Absalom, que era supostamente controlado cuidadosamente por sua administração, as docas era controladas por máfias e grupos conforme o setor ou quem houvesse ganho a última briga pelo local. Huaa sempre preferia parar no setor 4-H por conhecer seus ‘donos’ e confiar neles. Sua história era antiga.

Os raios tratores da doca se fixaram na Icarus causando um pequeno solavanco em sua disputa com os motores pela movimentação da espaçonave. Kroan soltou o manche enquanto a nave mantinha um movimento suave, permitindo que ele se espreguiçasse enquanto acompanhava algumas informações nos diversos mostradores do painel de controle.

“- Capitã Huaa... à que devemos a honra!” – a voz gutural que saiu do comunicador da Icarus soaria como uma ameaça, se Huaa não conhecesse aquele tom desde sua infância.

“- Wrisk, seu lagarto velho... não está em um asilo ainda?”

“- Bem que tentaram, mas só me tirarão deste hangar morto” – a longa risada se confundia com tosse e outras coisas, mesmo assim era muito agradável aos ouvidos da capitã.

“- Precisamos de reparos. Passamos por maus bocados e tenho algumas boas histórias para te contar. Issh está por aí?”

“- Não, mas avisarei que chegaram. Já acionei a equipe de drones de reparo para o garoto brincar!”

 “- Vá se ferrar... não preciso de ajuda!” – Kroan gritou do fundo da cabine enquanto arrumava suas coisas para descer, tirando gargalhadas de Wrisk. Era quase uma piada interna entre eles.

Quando a Icarus tocou o piso da doca, com um quase imperceptível impacto, Huaa passou a dar as ordens enquanto todos se arrumavam.

“- Sakesh, verifique equipamentos e suprimentos.” – ordenou a capitão pelo comunicador, recebendo um aceno de cabeça do enorme lagarto centado na cabine da Numbis – “Target, munição; Nytaa, organize os dados que tenho que levar.” – ela gira sobre a poltrona, às costas de Kroan – “Quanto tempo para deixar essas naves prontas?”

“- Dois dias.” - responde o garoto.

“- Perfeito, não pretendo sair antes de quatro.”

“- Pessoal, em cinco horas saímos juntos para o Olho.” – Huaa disse enquanto se encaminhava para a porta de desembarque pegando Nytaa pela cintura no caminho – “Há tempo de sobra para aprontarmos o básico das naves... Hoje as despesas são por minha conta!”

Quando a rampa de acesso baixou e a porta abriu, quem estava do lado de fora apenas escutou a barulheira e a bagunça que vinha de dentro, pouco antes da tripulação da Icarus surgir. Do lado de fora um vesk com ar envelhecido, com cicatrizes antigas e escamas opacas, estava apoiado em um container metálico. Ao seu redor uma série de drones do mais variados tipos assobiava, apitava e estalava em uma confusão que deveria ser a forma deles conversarem.

Conforme Wrisk começou a se mover em direção da Icarus, os drones o seguiram, algo entre voando e rodeando suas pernas. Pareciam enormes moscas circulando algo doce. Em certo momento, quando quase foi derrubado, o lagarto começou a dar ordens para eles até que todos focaram em Kroan e correram para ele, algo que estranhamente não incomodava o garoto.

“Adoro estas pestinhas, mas vão acabar me matando!” – o vesk dizia enquanto andava apressado na direção da capitã Huaa, abraçando-a e a levantando chão sem qualquer cerimônia ou dificuldade.

“- Cuidado, Nytaa ficará com ciúmes!”

“- Desse Yaruk? Lento como um Yaruk. Grande como um Yaruk. Fede como um Yaruk. É um Yaruk! Não tem como ter ciúmes dele!” – ia dizendo Nytaa enquanto passava pelos dois.

“- Assim você vai ferir meus sentimentos... Pequena humana!”

A risada dos três poderia ser escutada vários setores abaixo, mas o pessoal de Issh não era conhecido por ser o mais perigoso da estação. Eles mantinham seu negócio com cuidado e saberiam lutar se preciso, mas preferiam ficar fazendo seus negócios e não chamar a atenção de ninguém, principalmente de outros grupos rivais ou dos mais altos escalões da estação.

“- Então moças, o que as trazem por aqui tão cedo? Se bem lembro, de nosso último encontro, vocês estavam planejando uma bela jornada de aventuras e caça à alguma coisa...”

“- E tivemos nossa aventura.” – disse a capitã enquanto se atirava sobre uma cadeira – “Fomos tão bem que acabamos antes do que imaginávamos... e não há lugar melhor para gastarmos nossos créditos do que por aqui.”

“Mas a nave não parece nada bem. Passaram por maus bocados pelo visto!” – Wrisk ia falando enquanto analisava a nave lentamente com seu olhar experiente – “Parece que vocês enfrentaram uma esquadra inteira!”

“Foi bem perto disso.” – disse Huaa. A próxima meia hora Huaa e Nytaa passaram contando para Wrisk sobre o seu encontro quase fatal com aqueles insetos. Em alguns momentos ele acreditava e em outros ele coçava a cabeça não tendo certeza se as duas não estavam aumentando um pouco a história. Mania de aventureiros para fazer seus feitos parecerem ainda mais grandiosos. Mas ele também sabia que ainda havia muito para se descobrir sobre os mistérios dos Mundos do Pacto.

Com os assuntos em dia, Nytaa se juntou às tarefas da tripulação enquanto a capitã repassava algumas informações com a equipe de navegação de Issh. Com todos focados no serviço, e a ajuda dos drones de Wrisk, os consertos iniciais da Icarus foram realizados mais rápido do que o esperado. Kroan estava satisfeito com a primeira leva de reparos, aquilo que poderia fazer de mais urgente, e considerava que a nave estaria pronta ainda antes do que imaginara. A Nimbus, sob cuidados de Sakesh precisava de poucas coisas, mas o vesk se prontificou em iniciar um upgrade em alguns dispositivos eletrônicos responsáveis pelas contramedidas evasivas e de mira da nave. Em resumo, tudo estava andando muito bem. Tão logo as tarefas iam sendo completadas, a expectativa em saírem para a diversão aumentava.

Embora cada um possuísse interesses e peculiaridades próprias, era difícil imaginar a equipe se dividindo por muito tempo e a primeira noitada foi assim, todos juntos em um animado local de festa e bebedeira na zona do Anel, no distrito dos derivadores. Muitos viajantes, muitas histórias diferentes e com pouca gente para incomodar, era a pedida mais adequada quando você deseja beber, jogar conversa fora e não esquentar a cabeça. Durante quase todo o período noturno uma ala inteira do HD Externo, bar do momento, ficou reservada para a tripulação da Icarus e o pessoal Issh. Toda a atenção do bar estava concentrada na algazarra que aquele amontoado de seres de todas as espécies imagináveis faziam enquanto enchiam a cara.

Quando a capitã Huaa se levantou para sair mais cedo da festa ninguém da tripulação deu muitoa bola, nem mesmo sua companheira Nytaa. Todos sabiam deste costume dela nesses últimos tempos, desde que começou essa caçada por algo que ela ainda não mencionava. Bebia e conversava um pouco e depois saía para resolver os seus negócios com contatos desconhecidos. Ela era a capitã e ninguém iria se intrometer nisso, além disso todos estavam ganhando e sabiam que nada era mais importante para ela do que a tripulação. Numa das últimas estadias na estação, quando Nytaa perguntou sobre quais assuntos eram estes, ela se limitou a dizer que alguém a estava ajudando a encontrar as migalhas do caminho. Nytaa não entendia bem do que se tratava, mas sempre que ela voltava tinham um novo alvo para rumar.

o  O  o

Huaa não se importava tanto em ficar na zona do Cravo, a área com centenas de níveis abaixo da estação Absalom. Embora com uma reputação um tanto preocupante, ela conhecia bem aquela zona. Comunidades mais pobres e de vida mais sofrida e simples, era cosmopolita por natureza e divertida como pessoas despreocupadas são.

Entre idas e vinda Huaa crescera na zona dos braços da Estação. Embora não morasse na Estação até a adolescência pelo menos, sempre que passava um período em Absalom, ficava grande parte do seu tempo nos braços. Pulando de hangar e hangar, ficava fascinada com a vida de aventuras. Seguia as tripulações recém chegadas cuidando sua forma de agir, conversar e se divertir. Foi assim que conheceu Wrisk e depois Issh. Foi com eles que conseguiu sua primeira nave.

Mas ela sabia que os melhores e mais rentáveis trabalhos, nem sempre os mais lícitos, eram conseguidos no Cravo. Por isso mesmo ele era uma zona de instabilidade. Gangues e grupos rivais competiam por influência, espaço e trabalho. Pichações de spray elétrico sobre spray elétrico denunciava que a rotatividade de quem mandava era constante. Quanto mais próximo da área da Sucata, pior. Mas Huaa tinha uma política de não se intrometer nos negócios locais. Ela vinha, negociava e ia embora. Essa forma de agir lhe rendeu certo prestígio e mobilidade, inclusive entre grupos rivais.

Com o passar do tempo o prestígio virou amizade com algumas pessoas da área, como com Tharigo, o líder dos Metorians, um grupo de segunda linha dentre as muitas gangues da área da Sucata. Ele foi seu primeiro contato quando ela começou a atuar como aventureira em Absalon e, pode-se dizer, que o primeiro androide com quem simpatizou. Não que ele possuísse um bom coração, muito pelo contrário, era cruel e até mesmo perigoso, mas pelo menos ele era direto e cumpria seus acordos, algo difícil por aqui. Era ele que ela tinha vindo procurar.

Àquela hora da noite não havia circulação na área da Sucata. Alguns animais estranhos corriam pelos cantos dos corredores, disputando espaço com andróides abandonados e algum lixo. Mesmo assim Huaa estranhou não ver nenhum membro dos Metorians de guarda quando se aproximou do depósito que servia como a base deles. Quando ela percebeu a pesada porta de metal entreaberta instintivamente ele postou a mão sobre sua pistola semiautomática tática.

A capitã entrou cuidadosamente pela porta do amplo depósito. Ela estava aberta e com marcas inconfundíveis de arrombamento nem um pouco gentis. Pichações de protesto do Absalon Forte e suas frases de ordem contra a administração dos Mundos do Pacto demonstravam que ninguém estava no controle daquele espaço abandonado e que provavelmente estava servindo apenas para juntar pó, jovens desocupados e bandidos oportunistas. Mais um motivo para ficar atenta.

O ambiente possuía marcas de pequenas explosões, de lasers à esmo nas paredes e tudo estava revirado ou destruído, provavelmente uma ação posterior de saqueadores. Mas não era uma disputa por território de alguma gangue rival, se fosse o local estaria ocupado e não abandonado. Ela concluiu que deveria ter sido trabalho de alguma equipe de segurança privada ou os Comissários da Estação. Nestas regiões do Cravo as coisas são muito mais brutas. Não se pensa duas vezes em usar a força contra as comunidades pobres que residem aqui, principalmente se forem membros de gangues. Ela imaginou que Tharigo houvesse pisado no calo de algum poderoso para receber esse estrago todo. Isso poderia ser um bom sinal para ela.

Mas no final eram boas notícias. Se fosse outra gangue, poderiam estar atrás da mesma coisa que ela e tudo o que ela não queria agora seria mais atores na sua jogada.

Huaa foi caminhando lentamente, desviando de dejetos e mobiliários quebrados. Isto era um complicador já que ela desejava sair dali o mais rápido possível. O combinado era pegar a informação que precisava e pagar muito bem por elas. As últimas semanas de aventuras e perigos foram justamente para levantar esse montante. Quando ela recebeu uma mensagem em código afirmando que estavam próximo da informação que precisava, ela já estava terminando o último de seus trabalhos. Era o timing perfeito. Agora as coisas se complicaram. Por um lado ela estaria economizando, por outro ela não teria a informação e isso sim valeria algumas fortunas.

Mas os trabalhos recorrentes entre ela e Tharigo lhe renderam alguns privilégios, como saber um ou dois esconderijos para informações que ele usava para situações não previstas. Algo como um bote salva-vidas, como ele gostava de falar, para suas preciosidades – as informações.

Ela se aproximou da parede norte do depósito, bem onde estava o que restara de um dispositivo de alimentação, agora parcialmente queimado. Se ela tivesse sorte, o fogo não teria danificado nada. Após arrastar o móvel para o lado ela ativou seu dispositivo de acesso no comlink em seu pulso. Nytaa a chamava de antiquada por ainda não possuir um implante que possibilitasse este tipo de tarefa banal, mas ela gostava assim. Ela foi passando o pulso lentamente pela parede mais ou menos onde se lembrava de ser o lugar certo até que – “bingo” – um sinal de sincronização sendo realizado e uma mensagem no visor demonstrando o carregamento automático de arquivos. Ela estava entre os poucos registrados para conectar automaticamente e receber arquivos direcionados à ela e alguns segundos foram suficientes para carregá-los.

Ela saiu tão rápido quanto entrou. Não era prudente ficar ali por mais tempo, principalmente com as informações que ela havia conseguido.

De um duto de ar inativo dois olhos seguiam atentamente os passos da capitã desde que ela entrou no depósito. Era uma posição privilegiada já que fazia ligação entre o interior e o exterior do depósito o que não obrigou muita movimentação dela, se mantendo oculta. Ela viu o caminho da capitã e sua rapidez em encontrar e pegar os dados. Em sua mente apenas a idéia de que a capitã era culpada ou pelo menos sabia o porquê de tudo o que aconteceu com sua família.

Quando a capitã saiu do depósito e fez seu caminho de volta para onde quer que fosse, a pequena elfa a seguiu de longe. Mesmo sendo um horário tão avançado e com algumas áreas nos Braços possuindo grande movimentação, ela sabia exatamente como encontrar pontos cegos e sombras adequadas para se manter anônima. Além disso, a capitã havia baixado sua guarda por um instante e não imaginava que pudesse ser alvo de um perseguidor, qualquer que fosse. Ela se manteve alerta para tipos padrão – dois vesks suspeitos na entrada de um acesso à corredores escuros, um andróide com sinais de briga e até mesmo um grupo de jovens humanos com marcas de gangue e olhos vidrados. Mas a pequena elfa se mantinha imperceptívelmente ignorada.

O caminho da capitã Huaa foi sem paradas e quando ela chegou no hangar de Issh, onde estavam as naves, o silêncio era total. As contramedidas de segurança autorizaram automaticamente Huaa a ingressar no hangar. Os drones de Wrisk vagueavam pelo local em seus afazeres tentando não criar mais barulho que o necessário. A tripulação da Icarus estava toda em seus aposentos enquanto Nytaa dormia pesadamente na grande cama de Huaa.

Antes de se jogar na cama para um merecido descanso, a capitã transferiu os dados para um local seguro no sistema da nave, e de acesso exclusivo dela.

Do lado de fora do hangar, a pequena elfa se aninhou em um espaço oculto esperando a oportunidade certa.

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