Uma História para
Starfinder
Sobrevivência Incerta
Capítulo 5
Aproximar-se da estação de
Absalom traz dois sentimentos contraditórios para qualquer um. Por um lado é
sempre muito bom aportar naquela enorme massa metálica pairando no espaço,
repleta de recursos e possibilidades. Por outro lado é um verdadeiro inferno
realizar a aproximação.
O motivo é a Armada.
A Armada é como todos chamam a
gigantesca massa de espaçonaves de todos os tipos, tamanhos e procedências que
orbitam a estação. Se a população dentro da estação é enorme, a população da Armada
não fica atrás. Ela mais parece uma enorme cidade que se move lentamente, com
suas peças trocando de lugar conforme a necessidade ou desejo. Tudo pode ser
encontrado ali, de naves-templo à verdadeiras academias, de antros de
promiscuidade à mercadores sagazes. Este enxame é relativamente permanente, com
chegadas e partidas de alguns de seus membros de tempos em tempos. Ficar ali,
nas proximidades de Absalom, não é mero oportunismo financeiro. Estar ali lhes
traz um status semelhante à de ser nativo da estação... e isto é muito bom.
Mas este enxame estático não é
por si só o problema. O inferno se cria com vai e vem de milhares de naves indo
e vindo de todos os pontos possíveis da Armada. Somado à isso temos todo o tipo
de naves chegando e partindo. Das inúmeras e pequenas corredoras chegando com
seus tripulantes solitários às naves exploradoras próprias para viagens médias
com grupos maiores, dos grandes transportes trazendo turistas com recursos de
sobra à gigantescos cargueiros pesados. Em resumo, um inferno.
Nessas horas a capitã Huaa
agradecia por não ter que fazer a aproximação da Icarus até uma das centenas de
plataformas de pouso, em um dos vários braços da estação. Kroan, o responsável
pela pilotagem, divertia-se com aquilo e ela realmente não entendia como. Desde
que ele se juntara à sua tripulação, um ano padrão e meio atrás, ela nunca
entendeu como alguém tão novo possua tamanha perícia para aquela tarefa. E
pior, como alguém conseguia se divertir com aquilo.
À frente da Icarus, Sakesh
conduzia a Nymbus bem próxima e lenta para que conseguissem aportar em locais
próximos. Se perder em meio à Armada era fácil e, dentro da estação, procurar o
espaçoporto correto era ainda pior.
Por mais de uma vez precisaram desviar
às pressas ou de uma nave minúscula e descuidada que cruzava em sua frente como
se sua vida dependesse disso, ou de algum gigante transportador de Aballon. O
caminho sempre era lento e complicado, mas no final sempre chegavam ao seu
destino.
Conforme se aproximavam, o
contato dos controladores da estação era realizado para averiguar os recém
chegados e receber seus códigos de entrada e diretrizes de permanência. Estes
códigos eram como um cartão de visitas mostrando quem eram, o que faziam e como
tinham sido suas últimas visitas à Absalom. Não que as informações
necessariamente fossem verdadeiras, mas ainda assim era uma espécie de
controle.
Os gigantescos braços da
estação possuíam centenas de docas de todos os tamanhos e com todas as funções.
Transportes maiores acoplavam em setores específicos com plataformas de embarque
de passageiros ou carga. Já as naves menores, quando autorizadas, pousavam em
docas que serviam de hangares internos. Como tudo em Absalom, que era
supostamente controlado cuidadosamente por sua administração, as docas era
controladas por máfias e grupos conforme o setor ou quem houvesse ganho a
última briga pelo local. Huaa sempre preferia parar no setor 4-H por conhecer
seus ‘donos’ e confiar neles. Sua história era antiga.
Os raios tratores da doca se fixaram
na Icarus causando um pequeno solavanco em sua disputa com os motores pela
movimentação da espaçonave. Kroan soltou o manche enquanto a nave mantinha um
movimento suave, permitindo que ele se espreguiçasse enquanto acompanhava
algumas informações nos diversos mostradores do painel de controle.
“- Capitã Huaa... à que devemos
a honra!” – a voz gutural que saiu do comunicador da Icarus soaria como uma
ameaça, se Huaa não conhecesse aquele tom desde sua infância.
“- Wrisk, seu lagarto velho...
não está em um asilo ainda?”
“- Bem que tentaram, mas só me
tirarão deste hangar morto” – a longa risada se confundia com tosse e outras
coisas, mesmo assim era muito agradável aos ouvidos da capitã.
“- Precisamos de reparos.
Passamos por maus bocados e tenho algumas boas histórias para te contar. Issh
está por aí?”
“- Não, mas avisarei que
chegaram. Já acionei a equipe de drones de reparo para o garoto brincar!”
“- Vá se ferrar... não preciso de ajuda!” –
Kroan gritou do fundo da cabine enquanto arrumava suas coisas para descer,
tirando gargalhadas de Wrisk. Era quase uma piada interna entre eles.
Quando a Icarus tocou o piso da
doca, com um quase imperceptível impacto, Huaa passou a dar as ordens enquanto
todos se arrumavam.
“- Sakesh, verifique
equipamentos e suprimentos.” – ordenou a capitão pelo comunicador, recebendo um
aceno de cabeça do enorme lagarto centado na cabine da Numbis – “Target,
munição; Nytaa, organize os dados que tenho que levar.” – ela gira sobre a
poltrona, às costas de Kroan – “Quanto tempo para deixar essas naves prontas?”
“- Dois dias.” - responde o
garoto.
“- Perfeito, não pretendo sair
antes de quatro.”
“- Pessoal, em cinco horas
saímos juntos para o Olho.” – Huaa disse enquanto se encaminhava para a porta
de desembarque pegando Nytaa pela cintura no caminho – “Há tempo de sobra para
aprontarmos o básico das naves... Hoje as despesas são por minha conta!”
Quando a rampa de acesso baixou
e a porta abriu, quem estava do lado de fora apenas escutou a barulheira e a
bagunça que vinha de dentro, pouco antes da tripulação da Icarus surgir. Do
lado de fora um vesk com ar envelhecido, com cicatrizes antigas e escamas
opacas, estava apoiado em um container metálico. Ao seu redor uma série de
drones do mais variados tipos assobiava, apitava e estalava em uma confusão que
deveria ser a forma deles conversarem.
Conforme Wrisk começou a se
mover em direção da Icarus, os drones o seguiram, algo entre voando e rodeando
suas pernas. Pareciam enormes moscas circulando algo doce. Em certo momento,
quando quase foi derrubado, o lagarto começou a dar ordens para eles até que
todos focaram em Kroan e correram para ele, algo que estranhamente não
incomodava o garoto.
“Adoro estas pestinhas, mas vão
acabar me matando!” – o vesk dizia enquanto andava apressado na direção da
capitã Huaa, abraçando-a e a levantando chão sem qualquer cerimônia ou
dificuldade.
“- Cuidado, Nytaa ficará com
ciúmes!”
“- Desse Yaruk? Lento como um
Yaruk. Grande como um Yaruk. Fede como um Yaruk. É um Yaruk! Não tem como ter
ciúmes dele!” – ia dizendo Nytaa enquanto passava pelos dois.
“- Assim você vai ferir meus
sentimentos... Pequena humana!”
A risada dos três poderia ser
escutada vários setores abaixo, mas o pessoal de Issh não era conhecido por ser
o mais perigoso da estação. Eles mantinham seu negócio com cuidado e saberiam
lutar se preciso, mas preferiam ficar fazendo seus negócios e não chamar a
atenção de ninguém, principalmente de outros grupos rivais ou dos mais altos
escalões da estação.
“- Então moças, o que as trazem
por aqui tão cedo? Se bem lembro, de nosso último encontro, vocês estavam
planejando uma bela jornada de aventuras e caça à alguma coisa...”
“- E tivemos nossa aventura.” –
disse a capitã enquanto se atirava sobre uma cadeira – “Fomos tão bem que
acabamos antes do que imaginávamos... e não há lugar melhor para gastarmos
nossos créditos do que por aqui.”
“Mas a nave não parece nada
bem. Passaram por maus bocados pelo visto!” – Wrisk ia falando enquanto
analisava a nave lentamente com seu olhar experiente – “Parece que vocês
enfrentaram uma esquadra inteira!”
“Foi bem perto disso.” – disse
Huaa. A próxima meia hora Huaa e Nytaa passaram contando para Wrisk sobre o seu
encontro quase fatal com aqueles insetos. Em alguns momentos ele acreditava e
em outros ele coçava a cabeça não tendo certeza se as duas não estavam
aumentando um pouco a história. Mania de aventureiros para fazer seus feitos
parecerem ainda mais grandiosos. Mas ele também sabia que ainda havia muito
para se descobrir sobre os mistérios dos Mundos do Pacto.
Com os assuntos em dia, Nytaa
se juntou às tarefas da tripulação enquanto a capitã repassava algumas
informações com a equipe de navegação de Issh. Com todos focados no serviço, e
a ajuda dos drones de Wrisk, os consertos iniciais da Icarus foram realizados mais
rápido do que o esperado. Kroan estava satisfeito com a primeira leva de reparos,
aquilo que poderia fazer de mais urgente, e considerava que a nave estaria pronta
ainda antes do que imaginara. A Nimbus, sob cuidados de Sakesh precisava de
poucas coisas, mas o vesk se prontificou em iniciar um upgrade em alguns
dispositivos eletrônicos responsáveis pelas contramedidas evasivas e de mira da
nave. Em resumo, tudo estava andando muito bem. Tão logo as tarefas iam sendo
completadas, a expectativa em saírem para a diversão aumentava.
Embora cada um possuísse interesses
e peculiaridades próprias, era difícil imaginar a equipe se dividindo por muito
tempo e a primeira noitada foi assim, todos juntos em um animado local de festa
e bebedeira na zona do Anel, no distrito dos derivadores. Muitos viajantes,
muitas histórias diferentes e com pouca gente para incomodar, era a pedida mais
adequada quando você deseja beber, jogar conversa fora e não esquentar a
cabeça. Durante quase todo o período noturno uma ala inteira do HD Externo, bar
do momento, ficou reservada para a tripulação da Icarus e o pessoal Issh. Toda
a atenção do bar estava concentrada na algazarra que aquele amontoado de seres
de todas as espécies imagináveis faziam enquanto enchiam a cara.
Quando a capitã Huaa se
levantou para sair mais cedo da festa ninguém da tripulação deu muitoa bola,
nem mesmo sua companheira Nytaa. Todos sabiam deste costume dela nesses últimos
tempos, desde que começou essa caçada por algo que ela ainda não mencionava.
Bebia e conversava um pouco e depois saía para resolver os seus negócios com
contatos desconhecidos. Ela era a capitã e ninguém iria se intrometer nisso,
além disso todos estavam ganhando e sabiam que nada era mais importante para
ela do que a tripulação. Numa das últimas estadias na estação, quando Nytaa
perguntou sobre quais assuntos eram estes, ela se limitou a dizer que alguém a
estava ajudando a encontrar as migalhas do caminho. Nytaa não entendia bem do
que se tratava, mas sempre que ela voltava tinham um novo alvo para rumar.
o O o
Huaa não se importava tanto em ficar
na zona do Cravo, a área com centenas de níveis abaixo da estação Absalom. Embora
com uma reputação um tanto preocupante, ela conhecia bem aquela zona.
Comunidades mais pobres e de vida mais sofrida e simples, era cosmopolita por
natureza e divertida como pessoas despreocupadas são.
Entre idas e vinda Huaa
crescera na zona dos braços da Estação. Embora não morasse na Estação até a
adolescência pelo menos, sempre que passava um período em Absalom, ficava
grande parte do seu tempo nos braços. Pulando de hangar e hangar, ficava
fascinada com a vida de aventuras. Seguia as tripulações recém chegadas cuidando
sua forma de agir, conversar e se divertir. Foi assim que conheceu Wrisk e
depois Issh. Foi com eles que conseguiu sua primeira nave.
Mas ela sabia que os melhores e
mais rentáveis trabalhos, nem sempre os mais lícitos, eram conseguidos no
Cravo. Por isso mesmo ele era uma zona de instabilidade. Gangues e grupos
rivais competiam por influência, espaço e trabalho. Pichações de spray elétrico
sobre spray elétrico denunciava que a rotatividade de quem mandava era
constante. Quanto mais próximo da área da Sucata, pior. Mas Huaa tinha uma
política de não se intrometer nos negócios locais. Ela vinha, negociava e ia
embora. Essa forma de agir lhe rendeu certo prestígio e mobilidade, inclusive
entre grupos rivais.
Com o passar do tempo o
prestígio virou amizade com algumas pessoas da área, como com Tharigo, o líder
dos Metorians, um grupo de segunda linha dentre as muitas gangues da área da
Sucata. Ele foi seu primeiro contato quando ela começou a atuar como
aventureira em Absalon e, pode-se dizer, que o primeiro androide com quem
simpatizou. Não que ele possuísse um bom coração, muito pelo contrário, era
cruel e até mesmo perigoso, mas pelo menos ele era direto e cumpria seus
acordos, algo difícil por aqui. Era ele que ela tinha vindo procurar.
Àquela hora da noite não havia
circulação na área da Sucata. Alguns animais estranhos corriam pelos cantos dos
corredores, disputando espaço com andróides abandonados e algum lixo. Mesmo
assim Huaa estranhou não ver nenhum membro dos Metorians de guarda quando se
aproximou do depósito que servia como a base deles. Quando ela percebeu a
pesada porta de metal entreaberta instintivamente ele postou a mão sobre sua pistola
semiautomática tática.
A capitã entrou cuidadosamente
pela porta do amplo depósito. Ela estava aberta e com marcas inconfundíveis de arrombamento
nem um pouco gentis. Pichações de protesto do Absalon Forte e suas frases de
ordem contra a administração dos Mundos do Pacto demonstravam que ninguém
estava no controle daquele espaço abandonado e que provavelmente estava
servindo apenas para juntar pó, jovens desocupados e bandidos oportunistas.
Mais um motivo para ficar atenta.
O ambiente possuía marcas de
pequenas explosões, de lasers à esmo nas paredes e tudo estava revirado ou
destruído, provavelmente uma ação posterior de saqueadores. Mas não era uma
disputa por território de alguma gangue rival, se fosse o local estaria ocupado
e não abandonado. Ela concluiu que deveria ter sido trabalho de alguma equipe
de segurança privada ou os Comissários da Estação. Nestas regiões do Cravo as
coisas são muito mais brutas. Não se pensa duas vezes em usar a força contra as
comunidades pobres que residem aqui, principalmente se forem membros de gangues.
Ela imaginou que Tharigo houvesse pisado no calo de algum poderoso para receber
esse estrago todo. Isso poderia ser um bom sinal para ela.
Mas no final eram boas
notícias. Se fosse outra gangue, poderiam estar atrás da mesma coisa que ela e
tudo o que ela não queria agora seria mais atores na sua jogada.
Huaa foi caminhando lentamente,
desviando de dejetos e mobiliários quebrados. Isto era um complicador já que
ela desejava sair dali o mais rápido possível. O combinado era pegar a informação que precisava e pagar muito bem
por elas. As últimas semanas de aventuras e perigos foram justamente para
levantar esse montante. Quando ela recebeu uma mensagem em código afirmando que
estavam próximo da informação que precisava, ela já estava terminando o último
de seus trabalhos. Era o timing perfeito. Agora as coisas se complicaram. Por
um lado ela estaria economizando, por outro ela não teria a informação e isso
sim valeria algumas fortunas.
Mas os trabalhos recorrentes entre
ela e Tharigo lhe renderam alguns privilégios, como saber um ou dois
esconderijos para informações que ele usava para situações não previstas. Algo
como um bote salva-vidas, como ele gostava de falar, para suas preciosidades – as
informações.
Ela se aproximou da parede
norte do depósito, bem onde estava o que restara de um dispositivo de
alimentação, agora parcialmente queimado. Se ela tivesse sorte, o fogo não
teria danificado nada. Após arrastar o móvel para o lado ela ativou seu
dispositivo de acesso no comlink em seu pulso. Nytaa a chamava de antiquada por
ainda não possuir um implante que possibilitasse este tipo de tarefa banal, mas
ela gostava assim. Ela foi passando o pulso lentamente pela parede mais ou
menos onde se lembrava de ser o lugar certo até que – “bingo” – um sinal de sincronização sendo realizado e uma mensagem
no visor demonstrando o carregamento automático de arquivos. Ela estava entre
os poucos registrados para conectar automaticamente e receber arquivos
direcionados à ela e alguns segundos foram suficientes para carregá-los.
Ela saiu tão rápido quanto
entrou. Não era prudente ficar ali por mais tempo, principalmente com as
informações que ela havia conseguido.
De um duto de ar inativo dois
olhos seguiam atentamente os passos da capitã desde que ela entrou no depósito.
Era uma posição privilegiada já que fazia ligação entre o interior e o exterior
do depósito o que não obrigou muita movimentação dela, se mantendo oculta. Ela
viu o caminho da capitã e sua rapidez em encontrar e pegar os dados. Em sua
mente apenas a idéia de que a capitã era culpada ou pelo menos sabia o porquê de
tudo o que aconteceu com sua família.
Quando a capitã saiu do
depósito e fez seu caminho de volta para onde quer que fosse, a pequena elfa a
seguiu de longe. Mesmo sendo um horário tão avançado e com algumas áreas nos
Braços possuindo grande movimentação, ela sabia exatamente como encontrar
pontos cegos e sombras adequadas para se manter anônima. Além disso, a capitã
havia baixado sua guarda por um instante e não imaginava que pudesse ser alvo
de um perseguidor, qualquer que fosse. Ela se manteve alerta para tipos padrão
– dois vesks suspeitos na entrada de um acesso à corredores escuros, um
andróide com sinais de briga e até mesmo um grupo de jovens humanos com marcas
de gangue e olhos vidrados. Mas a pequena elfa se mantinha imperceptívelmente
ignorada.
O caminho da capitã Huaa foi
sem paradas e quando ela chegou no hangar de Issh, onde estavam as naves, o
silêncio era total. As contramedidas de segurança autorizaram automaticamente
Huaa a ingressar no hangar. Os drones de Wrisk vagueavam pelo local em seus
afazeres tentando não criar mais barulho que o necessário. A tripulação da
Icarus estava toda em seus aposentos enquanto Nytaa dormia pesadamente na
grande cama de Huaa.
Antes de se jogar na cama para
um merecido descanso, a capitã transferiu os dados para um local seguro no
sistema da nave, e de acesso exclusivo dela.
Do lado de fora do hangar, a
pequena elfa se aninhou em um espaço oculto esperando a oportunidade certa.
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