Pathfinder Contos
Fortão, o gato aventureiro
Capítulo 2
Fortão corria abaixado pela
luminosidade trêmula de algumas tochas. À cada passo ele sentia a umidade e o
frio do piso fétido daquelas ruínas, quase na fronteira entre Andoran e Cheliax,
junto às Montanhas Aspodell. De pouco em pouco ele parava e aguçava sua audição
e faro felinos e então recomeçava a andar. Tinha acabado de tomar uma decisão
pelo seu grupo - Eles são demorados e confusos em demasia.
Alguns momentos atrás, quando
chegaram à entrada do corredor que parecia o único caminho para seguir naquele
labirinto de túneis, todos o acharam muito suspeito. Provavelmente pelos corpos
perfurados ou decepados espalhados por toda a extensão do corredor até onde a
vista alcançava. Alguns deles claramente muito antigos. Gênios, Fortão
pensava ironicamente, desdenhando em silêncio seus companheiros.
Ainda no navio, após se afastarem
de Otari, ele escutou o grupo conversando sobre uma boa oportunidade no norte
de Andoran, mas dariam uma parada no caminho para averiguar uma história que
haviam escutado numa taverna ao longo de sua viagem. Seria um bom começo para a
ânsia de Fortão em ser aventureiro e todos estavam muito animados, o que o deixou
ainda mais entusiasmado.
Chegar até às ruínas foi fácil,
embora tenha levado vários dias de viagem desde o porto de Augustana, no sul,
mas tudo correra fácil, mas aos poucos Fortão foi conhecendo seu grupo. Ele se
perguntava, depois de alguns dias, como aqueles quatro não haviam se matado
logo na primeira aventura. O que eles tinham em coragem, lhes faltava em foco e
perspicácia. Perdiam horas debatendo, discutindo ou bebendo, não
necessariamente nesta ordem. A esperança dele era que na hora da ação isso
fosse diferente.
Não foi.
Quando chegaram na entrada do
corredor suspeito, eles já haviam derrotado uma fera de pequeno porte e muitas
pernas e alguns bandoleiros que faziam dos corredores sua morada, mas nada
verdadeiramente desafiador. Fortão ainda assim agia como se fosse a maior de
todas as aventuras. Seu foco era total, mas as piadas e reclamações de um e
outro acabavam tirando sua atenção e o irritando mais do que ele imaginava. Mesmo
ele decidiu esperar para ver como seria o andamento de tudo.
Mas quando chegaram à entrada deste
corredor ele verdadeiramente se irritou. O grupo parou na entrada de pedra e
começou um debate de como chegar ao outro lado superando as evidentes
armadilhas. Fortão que estava aos pés de Blander sentou e começou a tomar um
banho vagaroso enquanto escutava a, na sua opinião, inapropriada discussão, em
um inapropriado lugar, em um inapropriado momento. Embora enfadonha, Fortão aguentou
a situação por mais tempo que acreditava suportar. Mas quando um deles disse -
“vamos rever nossas possibilidades desde o início” – o gato não aguentou,
baixou a cabeça, suspirou e tomou ele uma atitude.
Se esses humanoides não conseguem
se decidir, eu decido por eles,
pensou enquanto dava uma olhada atenta no corredor. A disposição dos corpos, a
posição das setas espalhadas pelo chão, as correntes de ar, cada detalhe estava
passando por seus sentidos e bigodes.
O gato então se espreguiçou e num
curto pulo começou a correr pelo corredor e direção à outra extremidade. Ele
procurou percorrer o canto entre a parede esquerda e o chão. Aparentemente era
uma posição melhor já que não haviam setas cravadas naquela altura, certamente
lançadas pelos furos na parede oposta.
Sua expectativa era de que nos
vinte e poucos metros de extensão do corredor houvessem três tipos de
armadilhas, segundo sua análise de principiante. Primeiro um grupo de setas
disparadas lateralmente de ambas as paredes acionadas por pedras no chão que
acionavam por algum gatilho de movimento. Em seguida gigantes e afiadas estacas
que viriam do chão por óbvios orifícios por todo o piso. Por fim um conjunto de
lâminas que sairiam das paredes em três pares. Os corpos no chão iam diminuindo
em número ao longo do corredor, demonstrando o descuido dos aventureiros e sua
incapacidade de perceberem as armadilhas à tempo. Mas nenhum deles era um gato.
Quando Fortão se aproximou do
primeiro corpo um leve toque de sua pata no chão acionou a primeira armadilha.
O dispositivo disparou num quase inaudível clique e setas voaram de ambas as
paredes após alguns segundos em seguidas levas e em diferentes alturas. Mas
Fortão já havia percebido que a linha mais baixa de setas eram disparadas à
dois palmos do chão, ou seja, um gato passaria tranquilamente por debaixo do
ataque.
A ação de Fortão não havia sido
notada pelo grupo de aventureiros até a primeira seta ser lançada e bater na
parede oposta. O susto tirou todos da acalorada discussão e os manteve
boquiabertos por alguns instantes.
“Fortão!” - gritou o grupo
em uníssono.
“Gato louco!!! ... volte aqui!”
– esbravejava o anão.
Os gritos assustaram o gato mais
do que o acionamento da primeira armadilha. Ele deu uma olhada desdenhosa para
trás e continuou seu caminho, com as setas zunindo sobre suas orelhas. Os
olhares incrédulos de todos acompanhavam o gato à cada passo.
“Este gato está sendo mais
eficiente e esperto que nós!” – disse Allyohnas – “pelo tamanho ele leva
vantagem... quem sabe da próxima vez não mandamos o anão na frente?”. Todos
riram baixinho, menos o anão, que estava com a atenção nos passos do felino.
Fortão avançou até o local onde
estava o último cadáver perfurado. Entre este e o próximo corpo apodrecido pelo
tempo havia um espaço de cerca de dois metros. Era um espaço vazio e limpo de
corpos. Apenas poeira e mofo estavam no chão e, provavelmente, abaixo estava o
gatilho para a próxima armadilha.
Depois do sucesso na primeira
etapa, todos os aventureiros estavam estáticos, ainda quase sem respirar, olhos
fixos no movimento de Fortão, acompanhando-o à cada passo. Mas o sentimento
agora não era de apreensão, mas de expectativa.
Fortão parou logo no início desta
faixa segura entre as armadilhas e sentou-se estático, bem no centro, equidistante
de ambas as paredes.
“O que aconteceu, meu amigo?”
– perguntou Blander impondo sua voz à distância.
“Ele está analisando o
caminho. Cayden Cailean seja louvada, pois esse felino tem alma de aventura”
– sussurra o elfo enquanto se acocava sem tirar os olhos do gato.
Fortão já tinha um plano formado quando
recomeçou a andar. Graças à sua percepção ele já tinha a noção exata de como
proceder com esta armadilha e tinha certeza de que não haveria surpresas. Ele
se levantou e deu um passo. O clique do acionamento do dispositivo foi mais
audível desta vez, tanto por ele quanto pelos outros. Mas o gato parecia tranquilo
e começou a andar mais rapidamente.
Após atingir o local do primeiro
corpo desta seção, estacas de metal começaram a subir velozmente do chão como
que disparadas por enorme arco até uma altura de mais ou menos um metro e meio.
Elas vinham de orifícios quase ocultos pela poeira e sujeira. Fortão continuava
correndo sem parar em um zigue zague estranho, mas calculado e eficiente. As
estacas subiam velozmente e desciam logo depois, para novamente serem lançadas
para cima mais uma vez. Os corpos que estavam ali a muito tempo eram
maltratados e muitos, os mais antigos, iam sendo despedaçados. Mas o gato
continuava ileso. Ele parecia adivinhar onde cada estaca surgiria e antecipava
cada movimento mortal pulando ou desviando. Era uma dança belíssima.
Após alguns longos instantes
Fortão chegou à segunda área vazia, um novo paradouro entre as seções mortais
de armadilhas. Ele chegou nela cansado. Embora soubesse o que estava fazendo e
de sua certeza de chegar ileso até ali, isso não tornou o trabalho mais fácil e
seu corpo sentia o esforço. Ele parou e sentou-se para tomar ar. Estava próximo
do final de sua aventura pessoal. Ele já conseguia ver, no final do corredor,
uma enorme porta e próximo à ela uma pequena alavanca, que provavelmente
travava o funcionamento das armadilhas.
Toda a ação de Fortão foi seguida
entre suspiros de alívio e gritos de incentivo dos amigos aventureiros que
estavam, tal qual uma torcida organizada de uma partida de Basilisco,
aplaudindo as vitórias pessoais do gato.
Enquanto tomava ar e recuperava
as forças Fortão foi averiguando o último desafio. Os vários corpos
literalmente divididos em duas ou três partes já lhe haviam dado a dica do que
esperar. Olhou cada detalhe e criou uma estratégia um tanto simples.
“O que ainda haverá pela
frente?” – pensavam todos em silêncio.
O gato se levantou e arrumou o
corpo como que para dar um salto. Ninguém entedia o que estava acontecendo ou
por vir. O felino avançou com passos firmes como que aguardando alguma surpresa
e quando escutou o clique, saltou o máximo que pode para frente. Um instante
após o acionamento da armadilha três enormes lâminas circulares surgiram vindo
da parede à esquerda dele. Duas delas, as de cima e a de baixo, vinham na
direção de Fortão pela frente, enquanto a lâmina do centro vinha de suas
costas. Era uma armadilha muito inteligente, pois isso impossibilitava que um
infeliz desavisado pudesse recuar. Fortão deu mais um passo apressado e pulou
entre as lâminas que vinham em sua direção e logo depois, já atingindo o chão,
abaixava-se para que lâmina central passasse por sobre ele.
Logo que a lâmina central zuniu
por sobre sua cabeça as três outras lâminas, as da parede à sua direita
começaram seu caminho mortal, só que com uma composição inversa. Fortão já
imaginava isso e só teve que realizar o movimento inverso. Desta vez ele teve mais
dificuldade. O seu pequeno corpo já estava sentido a fadiga do esforço, mas ele
conseguiu chegar ao final da terceira e última armadilha são e salvo. Às suas
costas o grupo pulava e gritava.
De onde ele estava, ofegante e
com os músculos tremendo, faltava somente mais alguns metros até o final do
corredor. Ao final a alavanca sobre um pedestal o aguardava. O gato sabia que
provavelmente aquele era um simples dispositivo para travar as armadilhas para
quem desejasse voltar sem correr perigo.
“Vitória!” – ele pensou estufando o peito e olhando para trás, para
o resto do grupo, miando alto em regozijo. Todos aplaudiam e gritavam palavras
de glória para o felino.
“Isso Fortão!! Agora pule
naquela alavanca para podermos chegar até aí!” – gritou Gustav.
O gato começou sua caminhada da
vitória em direção ao final do corredor. Ele havia imaginado que seria até mais
difícil. Não que tenha sido fácil, mas para um primeiro desafio até que ele se
saiu de forma exemplar.
Ele escutava ao longe todos conversando
sobre a sua habilidade e vitória, esperando apenas que ele desativasse as
armadilhas quando seu caminhar foi interrompido por um estalo. Não um simples
estalo, mas o som característico de um mecanismo sendo acionado. O mesmo estalo
que ele escutara por três vezes até aqui e que acionaram as três armadilhas
mortais que ele estava esperando e que por isso mesmo foram sobrepujadas de
forma relativamente simples.
Ao escutar o estalo, o clique, o
tempo parou para Fortão. Sua mente começou a funcionar numa velocidade
impressionante. “Como pude ser tão tolo?”,
ele perguntava à si mesmo e numa fração de segundo ele entendeu tudo. Não eram
três armadilhas, mas quatro. A falta de cadáveres para denunciar uma quarta
armadilha se dava pelo simples motivo que ninguém havia conseguido ir tão longe.
Ele, que erroneamente achava que não havia mais corpos ali, pois não haveria
mais armadilhas, teve sua tese colocada por terra no momento em que ele
escutara aquele clique. Agora todas as probabilidades estavam contra ele. Ele
não imaginava o que aconteceria, não havia estudado o local, não havia pensado
nas possibilidades. Ele simplesmente avançou para o perigo por pura soberba.
Agora teria de ser ainda mais rápido ou sua vida de aventureiro terminaria
antes de começar.
Fortão percebia que o tempo
vagarosamente começava a andar novamente. Já era tarde para recuar e sua melhor
chance era avançar, e rápido. Seu segundo passo já foi um salto para encurtar a
distância. Mesmo no ar ele mantinha a total atenção para tentar vislumbrar de
onde viria o perigo. Orelhas retesadas para trás e bigodes esticados para
frente.
E o perigo veio justamente do ar.
Saindo do teto, uma série de
lâminas cortaram o ar seguindo a direção do corredor. Fortão não percebera
quantas elas eram, mas conseguiu perceber a direção. Mesmo no ar ele torceu
levemente o seu corpo para escapar de um golpe mortal que lhe cortaria da
cabeça à cauda. Quando tocou no chão sentiu uma pequena vibração que significou
em lâminas vindo de baixo também. Ele deu mais um salto para frente, mas não
rápido o suficiente, pois recebeu um pequeno ferimento na pata traseira. Mesmo
ferido e no ar ele teve novamente que girar seu corpo para escapar de mais um
par de lâminas que vagavam pelo ambiente do corredor. Ele já nem percebia
exatamente de onde vinham, apenas a direção que seguiam.
Faltava só metade da distância
para chegar à alavanca. Poucos metros, mas que pareciam quilômetros.
Quando novamente tocou o chão ele
já estava atrasado para o movimento das lâminas inferiores e teve que esticar
seu corpo para deslizar entre elas, mas não sem perder alguns bigodes para o fio
da lâmina. Ainda no chão ele saltou para a esquerda e quando tocou no piso já
pulou novamente para frente passando por entre outras lâminas que agora
cortavam o ar tal qual uma porta de correr invisível. Seu salto foi preciso,
passando por ambas as lâminas.
Os aventureiros, na outra
extremidade do corredor, permaneciam catatônicos pelo terror e esperando o
pior.
Fortão chegou ao final do
percurso mortal caindo no chão com seu pelo das costas eriçado. Suas pernas
tremiam mais do que conseguia se lembrar que já tivessem tremido. Ele não
achava o ar para seus pulmões. A visão estava turva. Ele só enxergava a
alavanca.
Com mais alguns passos
cambaleantes e dolorosos pelo ferimento ele chegou à alavanca e a acionou
usando o peso de seu próprio corpo. Depois disso tudo ficou preto.
Quando Fortão acordou todo o
grupo já estava de volta na floresta e ele não imaginava quanto tempo havia
passado. Ele estava sendo carregado numa espécie de pequena maca improvisada na
garupa de um dos cavalos. Todos conversavam animadamente, mas num tom baixo.
Quando perceberam que ele
acordara Fortão foi ovacionado pelo grupo. Todos falavam ao mesmo tempo e ele
quase não conseguia entender nada. Aos poucos ele compreendeu o que havia
acontecido. Após desmaiar, mas tendo acionado a alavanca, todos foram até ele e
o levaram para o próximo ambiente, que era a tão esperada sala repleta de
objetos valiosos. Infelizmente ela estava bem guardada por mortos-vivos e
alguns seres estranhos. O anão batia nas costas de Blander contando que nunca
haviam visto um guerreiro lutar tão bem e de forma tão brilhante com apenas uma
das mãos, já que na outra ele carregava o gato.
Todos disseram à Fortão que ele havia
sido um verdadeiro aventureiro e que sua atitude os inspirou para que a luta
final, naquelas ruínas, fosse realizada de forma tão brilhante e fervorosa.
“Agora você já teve seu
batismo de fogo, amigo!” – disse Blander com sua voz de barítono – “Agora
já é um dos nossos e não pode mais voltar atrás!”
“UM VIVA PARA FORTÃO!!!” –
brandiu o anão, seguido por todos os outros.
A primeira façanha de Fortão fora
um sucesso, mais ou menos no susto e por acaso, mas ainda assim, um sucesso.
Ele estava satisfeito, mas exausto. Seus olhos fecharam novamente e só se
abriram mais de um dia depois. Ele adormeceu satisfeito, pois já tinha uma
aventura para contar.
o O o
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