quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Conto para Muito Abaixo do Oceano - Jornada Perigosa: Fragmento 04

  
Conto para Muito Abaixo do Oceano
Jornada Perigosa: Fragmento 04

 
Os ânimos e a correria estavam um pouco mais calmos pelos corredores do Nouvel Espoir. Já haviam se passado alguns minutos desde o alvoroço resultante da turbulência inesperada. Embora os semblantes ainda fossem de preocupação, não ter havido nada pior já era de grande alívio.

Passando rapidamente por entre a tripulação em seus afazeres pós o ocorrido, Charlotte Brethran avançava em passos firmes, enquanto tentava limpar insistentemente a graxa das mãos. Por um lado, ver a chefe da engenharia fora da sala das máquinas logo depois daquela inesperada turbulência era um sinal de bom presságio, por outro, verem ela indo tão rapidamente para a ponte, poderia significar problemas.

Logo que Charlotte passou pela cantina, estrategicamente localizada bem no centro do navio, igualmente distante entre popa e proa, entre o topo e o baixio, ela foi abarroada por uma tripulante que de forma estabanada saía de sua cabine, claramente às pressas. O impacto, embora fosse diretamente de encontro à Charlotte, não lhe causou nada além de um inesperado susto e uma parada em sua marcha. Já a descuidada moça de longos cabelos negros e colares de contas coloridas em padrões vindos de longe no ocidente, acabou por ser lançada de volta para dentro de sua cabine, caindo sentada.

Ora, ora... onde vamos com tanta pressa Dona Ayasha?” – as palavras de Charlotte pareciam vindas das alturas – “espero que isso não cause um.... incidente diplomático... é assim que se fala?

Tentando recuperar o pouco de dignidade que ainda lhe restava naquela situação, a pequena Cheyene tirou o cabelo do rosto com as mãos e se levantou com apoio da engenheira.

Por muito menos guerras já foram iniciadas...” – disse Ayasha enquanto tentava ajeitas os cabelos e colocar os colocares de volta no padrão adequado – “mas vou deixar passar o... incidente... apenas dessa vez!

As duas trocaram sorrisos sinceros.

O que aconteceu Charlotte? Resolveu fazer algum experimento com os motores e quase nos afundou?

Dessa vez não fui eu. O capitão foi muito claro quanto aos meus experimentos com as modificações nos motores laterais... não quero passar o resto da expedição na solitária. Foi chamada na ponte também?

Sim... um dos le lièvre veio me avisar que estava sendo convocada com urgência.

“Curioso... para que será que precisam da consultora científica da APL? A turbulência teria alguma relação com nossa expedição?” - Charlotte franziu a testa, enquanto começava a acompanhar Ayasha rumo à proa.

Não faço ideia, mas se chamaram também a engenheira chefe, devem estar precisando de muitos olhos e opiniões para seja lá o que for.

Ayasha não deixava de estar numa mescla de curiosidade e preocupação. Desde que aceitou a importante tarefa de servir de consultora científica para a expedição do Nouvel Espoir, à cada dia uma nova descoberta lhe fazia ter mais certeza de que havia decidido pelo certo. Inicialmente ela recebera a proposta do Doutor Maturin com muito receio. Ingressar numa tripulação com uma cultura diametralmente diferente da sua terra natal era amedrontador, mesmo que estivesse sendo convidada por um dos responsáveis pelo departamento de intercâmbio do Instituto Linderbrock.

A oportunidade de intercâmbio para Ayasha foi amplamente comemorada. O chefe Anpaytoo, responsável pelo direcionamento das iniciativas de intercâmbio para proteção e conservação da Terra Oca do Instituto de Stoketon, foi o que mais a incentivou. O interesse de Anpaytoo era por um lado captar ao máximo os conhecimentos à APL, trazendo para sua terra natal tudo o que fosse possível de novidades e inovação. Por outro lado, havia um interesse político e geoestratégico. Ter intercambistas de seu povo era a oportunidade perfeita para colocar olhos e ouvidos da APL dentro de outras facções e estar sempre inteirado de seus progressos ou interesses, esses intercambistas conscientes ou não de estarem executando tal tarefa. Como aos olhos das demais facções a APL não passava de uma comunidade atrasada de pessoas com uma cultura que lhes causava não mais do que curiosidade, facilmente seus egos ficavam inflados com os pedidos de intercâmbio. A soberba de fações facilitava a entrada de estudantes da APL.

Ayasha era uma das que ignorava que estava exercendo tal tarefa política. Para ela, apenas o que interessava era a pesquisa científica, contribuindo da forma que fosse possível para a construção de conhecimentos. Essa paixão foi o que fez com Maturin a escolhesse. Ele achava importante ter alguém da APL como consultor, principalmente por ser uma expedição focada em assuntos da Terra Oca. Ele via nas preocupações dos povos do ocidente algo à se respeitar, além disso, ampliar.

Quando Ayasha e Charlotte entraram na ponte e deram de frente com a janela frontal com tudo iluminado lá fora não conseguiram esconder a surpresa.

Oh, merda... o que são aquilo? Destroços? De quem...?” – Charlotte estava empolgada ou espantada, ninguém saberia definir, nem ela – “Pelo visto as coisas não são simples aqui, hein Capitão!?

Já Ayasha correu para a vidraça e colocou os óculos – “Doutor, a tonalidade dessas águas... aquilo ali são algas de águas ácidas, mas não profundas, pela cor” – Ela ia apontando e tendo a atenção total de Maturin.

Siimmm... sabe o que isso significa?” – questionou Maturin com o mesmo brilho nos olhos.

Isso tem de vir que algum ponto entre mil e quinhentos e dois mil e quinhentos metros de profundidade... profundidades medianas...

E essa cor significa que temos abundância de...” – Maturin ia como que indicando o caminho que a mente de Ayasha deveria seguir.

Enxofre...

Que encontramos em grandes concentrações em áreas...

Vulcânicas.... como teorizado no meu ensaio sobre as amostras das águas do supervulcão da zona fraturada da Amazônia...” – o sorriso no rosto da pequena Cheyene ia crescendo à cada nova resposta, parecendo iluminar toda a ponte. Quem olhasse de longe juraria que ela estava quase flutuando em toda a sua excitação – “era só uma teoria...

Até agora... Temos de rever cálculos e rotas das correntezas, fazer o caminho inverso... pegar amostras... contrapô-las com os agentes químicos adequados e fazer muitos testes da lista da Tabela de Wiliason” – ia listando Maturin enquanto ela ia anotando em seu caderno de anotações tão rápida quanto uma taquígrafa.

O capitão Croix e Charlotte olhavam para os dois como quem assiste uma peça de teatro em outro idioma, percebendo as emoções, mas sem entender as falas.

Meu bom amigo...” – Croix disse baixo se aproximando de Maturin – “apenas me diga o quão perigosas essas águas são. Tenho uma tripulação que precisa de meus cuidados!

Ah, Croix, muito perigosas... dá para dizer que escapamos por pouco da morte certa. Não fosse termos batidos em destroços desgarrados e obrigados a parrar e teríamos entrado de frente na correnteza ácida e de lá não sairíamos com vida. Recomendo mantermos posição pelo mínimo de tempo possível e sairmos daqui tão logo peguemos as amostras.” Maturin falou cada palavra baixo e com o tom e peso da seriedade que aquele perigo significava.

Croix passou a mão na barba, como fazia sempre que estava preocupado – “Charlotte... tome as providências. Designe o pessoal para ficar de prontidão para quaisquer reparos que precisemos... correntezas mudam quando menos esperamos... deixe os motores prontos para qualquer saída de emergência. Sr Pietron, comece a fazer imediatamente os cálculos junto do Dr Maturin para o percurso a ser seguido... precisamos de uma rota segura para sair daqui. Senhorita Fauré, coloque vigias nas torres de popa, proa e no baixio com os detectores de acidez e salinidade... qualquer alteração deve ser informada... Alguém prepare a equipe técnica para saída imediata para recolher as amostras... Senhorita Ayasha, se encarregue de especificar para a equipe o que precisa ser feito e como com as amostras... Todos à seus postos, soem o sinal de atenção... temos dezenas de almas para mantermos vivas e um prêmio gordo para recebermos ao final da jornada!



Nota: esses contos se passam no cenário do RPG Muito Abaixo do Oceano. Eles são compostos de fragmentos de uma mesma história, cada um fazendo parte de pontos de vista de diferentes locais do submarino.


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