Conto para Muito
Abaixo do Oceano
Jornada Perigosa: Fragmento
04
Os
ânimos e a correria estavam um pouco mais calmos pelos corredores do Nouvel
Espoir. Já haviam se passado alguns minutos desde o alvoroço resultante da
turbulência inesperada. Embora os semblantes ainda fossem de preocupação, não
ter havido nada pior já era de grande alívio.
Passando
rapidamente por entre a tripulação em seus afazeres pós o ocorrido, Charlotte
Brethran avançava em passos firmes, enquanto tentava limpar insistentemente a
graxa das mãos. Por um lado, ver a chefe da engenharia fora da sala das
máquinas logo depois daquela inesperada turbulência era um sinal de bom
presságio, por outro, verem ela indo tão rapidamente para a ponte, poderia
significar problemas.
Logo
que Charlotte passou pela cantina, estrategicamente localizada bem no centro do
navio, igualmente distante entre popa e proa, entre o topo e o baixio, ela foi
abarroada por uma tripulante que de forma estabanada saía de sua cabine,
claramente às pressas. O impacto, embora fosse diretamente de encontro à
Charlotte, não lhe causou nada além de um inesperado susto e uma parada em sua
marcha. Já a descuidada moça de longos cabelos negros e colares de contas
coloridas em padrões vindos de longe no ocidente, acabou por ser lançada de
volta para dentro de sua cabine, caindo sentada.
“Ora,
ora... onde vamos com tanta pressa Dona Ayasha?” – as palavras de Charlotte
pareciam vindas das alturas – “espero que isso não cause um.... incidente
diplomático... é assim que se fala?”
Tentando
recuperar o pouco de dignidade que ainda lhe restava naquela situação, a
pequena Cheyene tirou o cabelo do rosto com as mãos e se levantou com apoio da
engenheira.
“Por
muito menos guerras já foram iniciadas...” – disse Ayasha enquanto tentava
ajeitas os cabelos e colocar os colocares de volta no padrão adequado – “mas
vou deixar passar o... incidente... apenas dessa vez!”
As
duas trocaram sorrisos sinceros.
“O
que aconteceu Charlotte? Resolveu fazer algum experimento com os motores e quase
nos afundou?”
“Dessa
vez não fui eu. O capitão foi muito claro quanto aos meus experimentos com as
modificações nos motores laterais... não quero passar o resto da expedição na
solitária. Foi chamada na ponte também?”
“Sim...
um dos le lièvre veio me
avisar que estava sendo convocada com urgência.”
“Curioso... para
que será que precisam da consultora científica da APL? A turbulência teria
alguma relação com nossa expedição?” - Charlotte franziu a testa, enquanto
começava a acompanhar Ayasha rumo à proa.
“Não faço ideia,
mas se chamaram também a engenheira chefe, devem estar precisando de muitos
olhos e opiniões para seja lá o que for.”
Ayasha não deixava
de estar numa mescla de curiosidade e preocupação. Desde que aceitou a
importante tarefa de servir de consultora científica para a expedição do Nouvel Espoir, à
cada dia uma nova descoberta lhe fazia ter mais certeza de que havia decidido pelo
certo. Inicialmente ela recebera a proposta do Doutor Maturin com muito receio. Ingressar numa
tripulação com uma cultura diametralmente diferente da sua terra natal era
amedrontador, mesmo que estivesse sendo convidada por um dos responsáveis pelo departamento
de intercâmbio do Instituto Linderbrock.
A
oportunidade de intercâmbio para Ayasha foi amplamente comemorada. O chefe Anpaytoo,
responsável pelo direcionamento das iniciativas de intercâmbio para proteção e
conservação da Terra Oca do Instituto de Stoketon, foi o que mais a incentivou.
O interesse de Anpaytoo era por um lado captar ao máximo os conhecimentos à APL,
trazendo para sua terra natal tudo o que fosse possível de novidades e inovação.
Por outro lado, havia um interesse político e geoestratégico. Ter
intercambistas de seu povo era a oportunidade perfeita para colocar olhos e
ouvidos da APL dentro de outras facções e estar sempre inteirado de seus
progressos ou interesses, esses intercambistas conscientes ou não de estarem
executando tal tarefa. Como aos olhos das demais facções a APL não passava de
uma comunidade atrasada de pessoas com uma cultura que lhes causava não mais do
que curiosidade, facilmente seus egos ficavam inflados com os pedidos de
intercâmbio. A soberba de fações facilitava a entrada de estudantes da APL.
Ayasha
era uma das que ignorava que estava exercendo tal tarefa política. Para ela,
apenas o que interessava era a pesquisa científica, contribuindo da forma que
fosse possível para a construção de conhecimentos. Essa paixão foi o que fez
com Maturin a escolhesse. Ele achava importante ter alguém da APL como
consultor, principalmente por ser uma expedição focada em assuntos da Terra
Oca. Ele via nas preocupações dos povos do ocidente algo à se respeitar, além
disso, ampliar.
Quando
Ayasha e Charlotte entraram na ponte e deram de frente com a janela frontal com
tudo iluminado lá fora não conseguiram esconder a surpresa.
“Oh,
merda... o que são aquilo? Destroços? De quem...?” – Charlotte estava
empolgada ou espantada, ninguém saberia definir, nem ela – “Pelo visto as
coisas não são simples aqui, hein Capitão!?”
Já
Ayasha correu para a vidraça e colocou os óculos – “Doutor, a tonalidade dessas
águas... aquilo ali são algas de águas ácidas, mas não profundas, pela cor”
– Ela ia apontando e tendo a atenção total de Maturin.
“Siimmm...
sabe o que isso significa?” – questionou Maturin com o mesmo brilho nos
olhos.
“Isso
tem de vir que algum ponto entre mil e quinhentos e dois mil e quinhentos
metros de profundidade... profundidades medianas...”
“E
essa cor significa que temos abundância de...” – Maturin ia como que
indicando o caminho que a mente de Ayasha deveria seguir.
“Enxofre...”
“Que
encontramos em grandes concentrações em áreas...”
“Vulcânicas....
como teorizado no meu ensaio sobre as amostras das águas do supervulcão da zona
fraturada da Amazônia...” – o sorriso no rosto da pequena Cheyene ia crescendo
à cada nova resposta, parecendo iluminar toda a ponte. Quem olhasse de longe
juraria que ela estava quase flutuando em toda a sua excitação – “era só uma
teoria...”
“Até
agora... Temos de rever cálculos e rotas das correntezas, fazer o caminho
inverso... pegar amostras... contrapô-las com os agentes químicos adequados e fazer
muitos testes da lista da Tabela de Wiliason” – ia listando Maturin enquanto
ela ia anotando em seu caderno de anotações tão rápida quanto uma taquígrafa.
O
capitão Croix e Charlotte olhavam para os dois como quem assiste uma peça de
teatro em outro idioma, percebendo as emoções, mas sem entender as falas.
“Meu
bom amigo...” – Croix disse baixo se aproximando de Maturin – “apenas me
diga o quão perigosas essas águas são. Tenho uma tripulação que precisa de meus
cuidados!”
“Ah,
Croix, muito perigosas... dá para dizer que escapamos por pouco da morte certa.
Não fosse termos batidos em destroços desgarrados e obrigados a parrar e teríamos
entrado de frente na correnteza ácida e de lá não sairíamos com vida. Recomendo
mantermos posição pelo mínimo de tempo possível e sairmos daqui tão logo
peguemos as amostras.” Maturin falou cada palavra baixo e com o tom e peso
da seriedade que aquele perigo significava.
Croix
passou a mão na barba, como fazia sempre que estava preocupado – “Charlotte...
tome as providências. Designe o pessoal para ficar de prontidão para quaisquer
reparos que precisemos... correntezas mudam quando menos esperamos... deixe os
motores prontos para qualquer saída de emergência. Sr Pietron, comece a fazer imediatamente
os cálculos junto do Dr Maturin para o percurso a ser seguido... precisamos de
uma rota segura para sair daqui. Senhorita Fauré, coloque vigias nas torres de
popa, proa e no baixio com os detectores de acidez e salinidade... qualquer
alteração deve ser informada... Alguém prepare a equipe técnica para saída
imediata para recolher as amostras... Senhorita Ayasha, se encarregue de
especificar para a equipe o que precisa ser feito e como com as amostras...
Todos à seus postos, soem o sinal de atenção... temos dezenas de almas para
mantermos vivas e um prêmio gordo para recebermos ao final da jornada!”
Nota: esses contos se
passam no cenário do RPG Muito Abaixo do Oceano. Eles são compostos de
fragmentos de uma mesma história, cada um fazendo parte de pontos de vista de
diferentes locais do submarino.
Acompanhe
o projeto do RPG Muito Abaixo do Oceano em sua página AQUI!
Nenhum comentário:
Postar um comentário