- Eu não gosto mais do que você de estar aqui - disse com os dentes cerrados, já cansado das reclamações do amigo -, mas como chegaríamos em Hongari sem passar por aqui. Confie me mim. Nada pode ser tão ruim assim.
Com os capuzes baixos, sobre os rostos, tentavam permanecer incógnitos. Só levantam a cabeça na esperança de encontrar a placa de alguma estalagem que se mostrasse discreta. As pessoas, nas ruas, eram poucas, tanto pela hora quanto pela chuva. Até agora a presença deles não fora notada.
Atravessavam as ruas lentamente, num cavalgar desinteressado, como se andassem à esmo. Ao dobrar numa esquina encontram um lugar que parecia perfeito – Taverna Grifo Raivoso. O nome causava um certo desconforto, mas não era muito grande e parecia ser pouco freqüentada. O lugar perfeito.
A está altura já não havia ninguém na rua. Suspeitavam ser quase meia-noite. Desceram dos cavalos e pegaram suas parcas bagagens. De dentro da taverna vinha uma luz fraca que atravessa as janelas imundas.
- Em poucos instantes estaremos secos, tomando uma boa sopa e bebendo um grande caneco de vinho quente! - exclama Cybal, tranqüilizando Eric.
Ao abrirem a porta de taverna sentiram o calor reconfortante e o forte cheiro de comidas variadas atingindo-lhes como um murro vindo em uma golfada de ar espesso contra seus rostos. Tudo misturado ao forte e denso odor de tabaco. Ambos já se sentiam mais aquecidos, mesmo antes de entrarem. As vozes multiplicavam-se. A música ecoava, agora que a porta estava entreaberta, e alegrava suas almas. “Amanhã estaremos longe daqui. O que poderia acontecer aqui?”, ambos pensaram.
O sangue escorria pelo corte próximo das costelas. A chuva que caia o fazia espalhar-se ainda mais pelas roupas. A dor perturbava a consciência de Cybal. Os últimos momentos pareciam fugir da realidade. Nada se encaixa. Ele não entendia o que estava acontecendo. Mesmo assim só tinha duas preocupações – encontrar Eric e fugir desta cidade.
Há poucos instantes ele e Eric se separaram para tentar despistar a turba que os perseguia. A cidade era nova para ele. Nada lhe era familiar. Não sabia bem para onde correr. “Nunca deveríamos ter entrado neste lugar”, pensou.
A chuva ainda incomodava, mas não tanto quanto a expectativa da perseguição. As árvores e a vegetação ao redor das casas serviam como um bom esconderijo. Mas não o tranqüilizavam ao ponto de sentir-se seguro.
Não se sabia se pela dor, ou pela chuva, ou pela surpresa dos acontecimentos. Mas Cybal não percebeu as sombras atrás dele antes de sentir a pancada. Seu último fio de consciência foi de seu rosto, caindo na lama, próximo à uma bota.
o O o
- Onde ele se meteu? Era para nos separarmos, mas sem irmos muito longe - balbuciava Eric, sentindo ainda a forte pancada recebida nas costas.
Mesmo preocupado ele sabia que ficar parado em qualquer lugar desta maldita cidade seria morte certa. Ainda estavam atrás dele. E não muito longe. Ouvia os grito das pessoas à pouca distância. “Tenho que sair daqui, e logo”, não parava de pensar em meio ao redemoinho de dúvidas e medos.
Recuperando o fôlego e tentando tirar o cabelo do rosto reiniciava sua fuga. Tentava lembrar do caminho que percorreram quando de sua chegada. Mas era uma cidade totalmente desconhecida para ele. E a noite não ajudava muito. “Na rua logo me encontrarão. Tenho de conseguir um abrigo longe dos olhos ou uma informação segura de para onde ir”, eram seus pensamentos e seu desespero.
Percorrendo a rua encharcada chegava ao que seria uma pequena praça cercada de casebres e onde desembocavam várias ruelas. “Ótimo. Agora consegui realmente me perder!”.
Mas o desespero é substituído por uma esperança. “Ela não vai me negar ajuda”. Numa das esquinas, um casebre de madeira havia uma doce velhinha apoiada na janela. O retrato vivo da doce avó esperando pelo neto Ela tinha o rosto sereno e se parecia com a maioria das avós que todos têm. A dele inclusive.
–– Minha senhora!”, Eric falou parando à sua frente totalmente ensopado e tentando regularizar sua respiração. –– Por Marah, preciso de sua ajuda. Eu juro por tudo o que é sagrado e em nome dos deuses. Não fiz nada. Somente entrei em uma taverna esperando um pouco de alimento e calor e tudo saiu de controle. Querem me matar...”
A voz de Eric foi diminuindo aos poucos até sumir em um sorriso mudo. A velha parecia não escuta-lo. Só o que mudava era sua expressão. Ela parecia estar vendo o próprio Megalokk. O horror em seus olhos crescia da mesma forma que o grito em seus lábios:
–– Socorro. Um mago!
“Eu não acredito. Isto é uma cidade de loucos. O que raios está acontecendo aqui?”, pensou, enquanto dava meia volta e preparava-se para correr pelo caminho por onde veio – o único que conhecia e sua única saída.
Dando meia volta sobre os calcanhares percebia que as janelas das casas próximas entreabriam. A reação era imediata. Todos espiavam por frestas como se temessem abri-las. Sua surpresa começava a transformar-se em novo pavor. “Estou numa cidade de loucos. Tenho que sumir daqui”, eram as únicas palavras que invadiam seus pensamentos.
Já havia iniciado a fuga daquele beco infernal quando teve noção exata do tamanho do seu problema. Sua única saída acabava de ser bloqueada. Cinco figuras estavam entre ele e a próxima rua. “Por Wynna, o que falta acontecer?”.
Eric continuava a avançar, agora mais lentamente. A chuva continuava a cair. Suas roupas pesavam mais que o normal, e isso lhe causava desconforto. A distância ia diminuindo e as figuras tornaram-se mais nítidas. De borrões, ao longe, tornam-se claras. Eram cinco milicianos. Iguais ao que ele e Cybal haviam visto guardando os arredores da cidade.
Um suspiro de alívio veio aos seus lábios. “Wynna olhou por mim. Tenho a quem pedir auxílio”, pensou aliviado.
Percebendo quem são as figuras começou a apressar o passo para encontra-las logo e pedir sua proteção imediata. Na sua cabeça nada melhor do que aconselhar-se com representantes da lei e desfazer qualquer confusão que tenha criado aquela situação.
Os cinco soldados permaneceram parados, na chuva, observando seus movimentos. Um deles, o mais à frente, inspirava ser o líder. E para ele era que Eric se dirigia. Com um sorriso sincero no rosto ele levantava as mãos ao céu.
–– Pelos deuses, como estou feliz em encontra-los. Deve estar acontecendo alguma confusão. Vejam só. Eu e um amigo recém chegamos a esta cidade e estamos sendo caçados como uma peste. Deve ter alguma dupla de criminosos que se parecem conosco. Nós entramos numa ‘tavern’...
Novamente sua voz foi sumindo. Mas não devido ao rosto dos homens à sua frente – como ocorreu com a velha senhora – pois seus semblantes continuam impassíveis. Mas ao que acabara de perceber. Um dos soldados, o mais à esquerda e afastado, arrastava algo. Parecia um saco de batatas. Mas aos poucos aquilo que parecia um saco de batatas tornou-se nítido. Era seu amigo. Cybal estava imóvel, sendo arrastado ao lado do guarda, suspenso apenas pelo punho e seguro com desvelada raiva pelo miliciano.
Mesmo sem ter um espelho conseguia perceber seu rosto empalidecendo. Estava sem ação. O homem ao qual se dirigira – o suposto líder – não mudou de fisionomia um só instante. Frente ao jovem mago, estupefato, ameaçou um breve sorriso – de escárnio ou prazer.
Calmamente ele deu um passo na direção de Eric.
–– Nós sabemos do enorme equívoco que aconteceu nesta noite. O equívoco de dois infelizes desavisados que entraram num lugar imaculado. Para que? Para sujar nossas ruas com sua imunda presença. Para nos iludir e tomar nossas almas. Mas este equívoco será resolvido - As últimas palavras do enorme soldado vieram acompanhadas de um descomunal murro que jogou Eric para trás.
Ele cambaleou por dois metros e caiu de joelhos. Estava desorientado. Tonto. Não estava entendendo mais nada. Só havia pavor em sua mente. Não percebia mais nada ao seu redor. Desejava apenas nunca ter entrado nesta cidade.
A chuva que caia lentamente lhe trazia de volta à razão. Aquelas cinco figuras agora estavam ao seu redor. Terrivelmente próximos. As janelas não estavam mais abertas. Todos sabiam o que iria acontecer.
–– Por que? Só gostaria de saber isto? Por quê?
–– Nosso senhor abriu nossos olhos para o que realmente são – disse calmamente o soldado. –– Ele quer todos vocês presos para interrogatório que ele pessoalmente se agrada em realizar.
–– Mas você tem sorte, meu caro - falou aquele que segurava o braço de Cybal desfalecido –– Não terá de viajar até a capital para isto. É muito demorado e cansativo. Vamos poupa-lo disto.
–– Exato. Não queremos criar um desconforto para o senhor. Nem queremos incomodar nosso amado mestre.
–– Nós gostamos de cuidar de nossos problemas por aqui mesmo - exclama um outro deixando claro, em sua voz o sarcasmo. –– E faz tempo que não nos divertimos.
As agressões começaram. A pouca prática nas artes mágicas e a inabilidade total com os punhos não prepararam Eric para isso. Um a um eles surravam-no. Mesmo munidos de espadas e adagas queriam sentir o prazer de acabar com o jovem mago com as mãos.
Eric já não sentia as pancadas. Só esperava pelo momento derradeiro. E orava para que ele não demorasse muito em ir de encontro à bela Wynna.
O maior dos soldados ergueu o mago pelo pescoço, colocando-o de pé. Olhando fixamente em seus olhos enquanto, com a outra mão ele desembainhava calmamente um punhal que estava na cintura. Os outros soldados aproximam-se mais para vislumbrar o macabro espetáculo que estava preste a iniciar. Os breves instantes alongavam-se agonizantemente. “Não demorará muito agora”, foi o que pensou.
Ele só sentia os pingos da chuva atingindo-o. Não sentia dor. Não sentia frio. Mas nunca se sentiu tão sozinho. Forçava-se em abrir os olhos para pelo menos ver o que lhe aconteceria.
Conseguia ver todos os guardas ao seu redor formando um semicírculo de cruéis espectadores. Todos prontos para aplaudir seu sangue derramado.
Mas algo aconteceu. Algo inexplicável.
O soldado da sua esquerda, que sorria de forma doentia, estirou os braços de repente. Seu rosto embrutecido passou da alegria ao olhar vazio da morte em um instante. De sua boca correu um fino filete de sangue. Os outros não perceberam até ele atingir o chão de joelhos.
A surpresa fez com que os milicianos passassem a atenção do mago para o corpo já sem vida caindo ao chão. A figura que permaneceu de pé, protegida pelas sombras atrás do corpo que caiu, desapareceu quase tão rápido quanto apareceu. A surpresa foi desnorteante.
Quase tão rápido quanto à primeira investida foram as seguintes.
De meio à escuridão zuniu uma flecha que atingiu de forma certeira o pescoço de sua vítima. Outro dos guardas caia.
Sons saiam de todos os lados como se a escuridão tomasse vida. A chuva atrapalhava a localização. Os sons pareciam estar cercando-os. O pavor tomava conta do olhar dos guardas nos poucos segundos que seguem.
Sem aviso, de ambos os flancos, sons leves mas rápidos, de passos denunciavam uma nova investida. As sombras que avançavam demonstravam a leveza que figuras tão dispares podem ter. De um lado uma sombra gigantesca, como de uma montanha que se movimenta pela escuridão, empunhando um enorme machado. Do outro uma sombra igualmente rápida, mas extremamente delgada e graciosa, empunhando uma espada. As duas passaram pelos infelizes milicianos acertando-os e tirando-lhes suas vidas com a mesma rapidez com que surgiram. O grande guerreiro lançou o corpo de sua vítima muitos metros adiante com um golpe violento mas silencioso. Já a sombra menor, de forma certeira e comedida, aplicou um golpe que pareceu nem atingir o alvo. Mas ele estava certamente morto como seus vis companheiros.
Tão rápido quanto surgiram desapareceram, as duas velozes sombras, na escuridão.
Num instante o grande miliciano que ainda segurava o pescoço de Eric percebeu-se sozinho no centro de quatro cadáveres. Ele ficou imóvel como um animal acuado que sabe que o caçador o espreita na escuridão. O medo de olhar em volta encheu-o de pavor. O suor molhava seu rosto mais do que a chuva. O aperto de sua mão contra o pescoço do jovem mago era trêmulo.
–– Solte-o rapaz - ordenou uma voz rouca e feminina colocando a ponta da espada na nuca do guarda.
–– Está acabado por hoje - outra voz, também feminina, surgiu de um dos lados mostrando-lhe, pela escuridão, a ponta de uma flecha pronta para o lançamento.
–– Eu as ouviria... - e uma voz que mais parecia o soar de um trovão atingiu-lhe vindo da figura gigantesca que só pelo contorno parecia ser humana.
–– Acho que ele não vai soltar. Aposto um tonel de vinho que ele não é inteligente o suficiente!
- Eu aposto que ele vai é precisar trocar as calças....
–– Vamos cortar sua mão de uma vez.
Duas vozes conversavam, uma feminina e outra animalizada, vindo de dois vultos de trás do quase inconsciente mago.
–– Acalmem-se. Todos sabemos o que devemos fazer e nosso querido amigo aqui também sabe que deve desistir - disse uma voz muito suave e baixa, mas extremamente clara, que vinha de uma figura aproximando-se calmamente pelas sombras em um manto muito escuro.
A mão abriu e o mago foi ao chão sem conseguir manter-se de pé devido aos ferimentos. O soldado não conseguiu sequer abaixar seu braço, nem parar de tremer.
Eric, de joelhos elevou os olhos e viu quatro figuras apontando suas armas ao redor do soldado que ainda estava vivo.
–– Você teve sorte meu caro - dizia o enorme guerreiro empunhando seu descomunal machado –– Você teve muita sorte. Só sairá daqui vivo para dizer à todos os outros que isto está prestes a acabar.
–– Sangue inocente não será mais derramado impunemente - disse uma das figuras menores, brincando com a ponta da adaga no cinturão do soldado.
–– E Ferren será detido - disse a arqueira de forma graciosa enquanto brincava com a plumagem de uma de suas flechas.
Eric sente que suas forças o abandonavam de vez. Mas não antes de ver uma das mulheres do grupo acertar a cabeça do miliciano com a empunhadura de uma adaga.
Desacordado o guarda vai ao chão.
Quase ao mesmo tempo o jovem mago perde os sentidos.
o O o
O sol brilhava e aquecia o ar. Eric estava acordado e sentado dentro de uma carroça. O balanço do transporte ainda o fazia sentir um pouco de dor em várias partes do corpo. Mas sentia também que lhe foram aplicados certos métodos mágicos de cura, ou estaria em situação bem pior. Cybal ainda não havia acordado – seus ferimentos haviam sido bem piores. Calcula que já se passaram alguns dias desde os terríveis acontecimentos. Dias estes que se perderam em sua memória.
Lembrava muito pouco. Apenas pedaços de visões misturadas. Lembrava de ser carregado pelo guerreiro gigantesco. Lembrava de uma bela senhora com longos cabelos loiros e veste brancas aplicando-lhe compressas na fronte. Lembrava de alguém, com um pingente que mostrava um pássaro em chamas alçando vôo, sentado ao seu lado e rezando à algum deus.
Depois disto só se lembrava de ter acordado dentro da carroça. O condutor só soube dizer que o entregaram logo após a fronteira de Hongari e lhe pagaram muito bem para leva-lo em segurança até Triunphus.
Além disso, o condutor havia recebido um bilhete para entregar-lhes quando acordassem. Eric guardou-o com carinho após lê-lo. O bilhete só possuía duas frases.
“Conte a todos o que aconteceu. Nunca mais deixaremos que se repita”.
João "0 escriba" Brasil
Nota: Esté o conto introdutório do suplemento "Os Caçadores de Abutres". Em breve novas notícias!!! Aguarde.