terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Diário de um Escudeiro - 19

Vigésimo nono dia de Cyd de 1392.

Nunca poderia imaginar que depois de um dia tão incrível, quanto o de ontem, tanta coisa pudesse acontecer. Foram horas de horror e ação. Não por milagre, mas por muito esforço estamos todos vivos. Parecia que o mundo havia virado de cabeça para baixo depois que adormecemos.

Estávamos todos em nossos locais de dormir. Não sei quanto tempo passou, mas foi o suficiente para que algumas das fogueiras perdessem sua força e para que as sombras conseguissem avançar um pouco sobre nós.

Enquanto Kalla ficava circulando por entre os arredores do acampamento, um vigia permanecia sobre um dos carroções à espreita. Todos dormiam tranqüilos.

Tudo aconteceu muito rápido e só no amanhecer é que conseguimos juntar as peças para percebermos como tudo começou.

Como a noite estava com um ar agradável de final de verão e o céu limpo, preferi dormir próximo à fogueira. A lua recém saíra de sua posição de trevas e iniciava-se timidamente em arco. Tudo estava mais escuro. Fui um dos primeiros a perceber tudo. Acordadei de pronto quando senti um impacto próximo de onde estava deitado com a queda do vigia de cima da carroça.

Demorei alguns instantes para perceber o que realmente acontecia. Mas antes mesmo de perceber já escutava os gritos vindo de todos os lados da floresta. Parecia que toda a mata estava acordando e dando salvas de guerra.

Do outro lado do acampamento Trícia já estava aos berros dando alarme enquanto Mikail escalava outra carroça. Os gritos da floresta agora eram engordados com os choros das raparigas e berros dos homens da caravana.

Eu ainda permanecia atônito sentado no mesmo lugar olhando o vigia que, pelo visto, já estava morto antes mesmo de tocar o chão. Seu pescoço estava transpassado por uma seta não muito maior do que dois palmos. Não era grande, mas suficientemente mortal para derrubar o homem. O sangue espalhava-se abundante.

Mais um instante e o céu ficou iluminado, mas não de estrelas. Flechas com pontas ardentes cruzaram a noite espalhando-se por todo o acampamento atingindo tendas e carroças. Estava longe de ser uma saraivada coordenada de arqueiros, mas eram mais que o suficiente para espalharem o terror.

A desordem estava feita.

Os homens que estavam correndo para pegar em armas agora tinham de se preocupar com o fogo também. Karbos juntou alguns indicando onde jogar água, enquanto Sullion, empunhando uma maça metálica e enferrujada, formava um pequeno grupo de resistência aqui e ali.

Os gritos estavam cada vez mais fortes. Do alto de uma das carroças vi Trícia – que subira rapidamente numa – lançar uma flecha, depois outra e mais outra. Mikail corria, empunhando sua besta, por sobre as carroças indo para o lado oposto ao que a caçadora estava protegendo. Mas mesmo assim os gritos pareciam mais altos e em maior número.

Pelas laterais do acampamento, por entre as carroças, surgiram os primeiros sinais do perigo que nos espreitava. Alguns homens de aspecto animalesco transbordaram por entre os vãos saltando de armas em punho.

As mulheres que se refugiaram na carroça que estava quase no centro do acampamento fecharam todas as janelas e portas. Ao redor da carroça cerca de dez homens, mais Sullion, prepararam-se para enfrentar os bandidos e proteger as mulheres. Eles correram todos tentando formar um obstáculo para os bandidos.

O transbordo de homens asquerosos não parou até terem entrado pelo menos uns vinte. A ação de Trícia e Mikail parecia ter impossibilitado a vinda de mais deles pelos outros lados. Mas os que já tinham entrado eram mais do que suficientes. Além do fogo, é claro, que já deixara uma carroça em chamas que subiam ao céu fazendo com que muitos homens tentassem com que as chamas não avançassem.

O combate começou forte, frio e desmedido.

Os invasores carregavam espadas curtas em sua maioria e um ou outro levavam machados pequenos, além disso um, pelo menos, trazia uma besta. De pronto eles derrubaram pelo menos a metade da oposição formada pelos empregados da caravana. Os trabalhadores de Sullion e Karbos não eram guerreiros de formação e tentavam o seu melhor. Mas isto não era o suficiente.

Sullion, que parecia ser o mais treinado deles, como todos os anões, derrubou dois apenas num movimento de sua pesada maça de um lado para o outro. Karbos correu com mais alguns para tentar impedir o pior. A luta continuou entremeada por berros de dor, ódio e medo.

Mesmo alguns dos bandidos sendo abatidos a diferença e o transcurso do resultado final parecia ser inevitável.
Do lado de onde estava Mikail surgiram alguns invasores cruzando o vão entre os carroções e indo na direção do centro. O jovem caçador não teve condições de frear à todos os que vinham por aquele lado.

Naquele momento meu senhor saiu de sua tenda, que ficava no meio do caminho entre os invasores que passaram pela posição de Mikail e o carroção do centro. Sir Constant, trazendo a espada em punho, mas com o rosto inchado pelo excesso de vinho, parecia ter sido acordado mais pelo barulho que o incomodara do que pela urgência do momento. Mas mesmo assim, não sei se por experiência ou reflexo, ele conseguiu desviar de um ataque e girando corpo decepou uma cabeça sem muito esforço, freando o avanço dos outros.

O centro da caravana tinha as feições de uma grande arena. Era só luta por todos os lados. Eu ainda estava inerte no mesmo lugar, e por esse motivo mesmo, havia passado desapercebido. Eu estava mais ou menos às costas dos bandidos. E cada vez mais bandidos permaneciam de pé, e cada vez mais camaradas da caravana estavam inertes no chão. Sullion e Karbos lutavam bravamente. Sullion parecia até estar com um brilho nos olhos, como todo o bom anão. E os bandido já haviam percebido que a maior resistência estava nos dois amigos.

Os dois estavam um de costas para o outro e iam lutando e lentamente girando contra pelo menos uns seis bandidos. Um dos homenzarrões um pouco mais distante, o líder quem sabe, pelas feições também percebera isso e gritou algo inintelegível para aquele que tinha uma besta em mãos. Prontamente ele fixou os olhos na dupla de donos da caravana, levantou o mecanismo e mirou a besta.

O infeliz com a besta estava a pouco mais de dez metros a minha frente. E ele estava a uns quinze metros de distância de meus novos amigos. Seria um disparo fácil. Ele já havia derrubado pelo menos uns quatro empregados da mesma forma. Era uma covardia sem tamanho derrubar nobres combatentes desta forma por motivos mesquinhos.

Eu tive de fazer algo. Nem imagino como cheguei tão rapidamente ao meu alvo. Corri com a adaga em punho e joguei sobre o bandido com a intenção de pelo menos dificultar-lhe o trabalho.

Com o impacto o disparo saiu completamente fora da direção do alvo, riscando o ar próximo à cabeça do anão. Eu cai me esfolado um pouco e o bandido um ou dois metros à frente. Com a queda a corda da besta arrebentou inutilizando a arma. O bandido levantou, jogando a besta para o chão e correu em minha direção. Sua espada pequena, que ele elevara acima da cabeça, baixou rapidamente. Se não fosse minha velocidade em desviar teria me cortado ao meio.

Mas as dicas de Mikail se mostraram muito mais importantes do que eu imaginava. Dei apenas um passo para o lado e a espada baixou rente à mim. Tive todo o flanco do bandido para enterrar minha arma. Ela penetrou um pouco abaixo das costelas. Mas deve ter sido muito mais fatal do que eu podia supor, pois logo que a adaga penetrou, ele perdeu forças e caiu de rosto no chão.

Foi minha primeira morte. Mas nada me tirava da cabeça que houvera sido por um motivo nobre. Às vezes temos de fazer o mau para que o bem triunfe. Ainda tive tempo de cooperar mais um pouco enfrentando mais um dos bandidos, mas sem matá-lo, pois já estava ferido.

Aos poucos nossa sorte mudou. Sullion e Karbos derrubaram, mataram ou inutilizaram a maior parte de seus oponentes. Sir Constant também tinha um bom número de corpos aos seus pés e parecia estar muito feliz com a matança. Trícia já estava no chão e ajudava com os últimos oponentes enquanto Mikail ajudava nos incêndios.

Mas quando tudo parecia calmo, do nada, surgiu um homem estranho. Era baixo, pouco mais alto que um anão. Tinha estampado no rosto uma carranca ornada com grossas sobrancelhas negras. Mas o que mais assustava era seu ar de tranqüilidade como se fosse dono da situação.

“- A perda destes homens será um transtorno, com certeza será. Mas de onde eles vieram posso conseguir muitos mais. E o dinheiro que ganharei com sua caravana vale este ínfimo contratempo” – disse numa voz que parecia estar dentro de nossas cabeças.

Logo percebemos que ele era um manipulador das artes mágicas. Num movimento rápido de suas mãos e palavras que saiam quase sem faze-lo mover os lábios lançou algo viscoso e esbranquiçado que grudava em tudo o que tocava. Esta teia avançou do mago e depositou-se em tudo que estava próximo da carroça central numa grande área circular. Sir Constant, Karbos e Sullion, juntamente com quase todos os sobreviventes, caíram totalmente enredados.

Trícia e Mikail, que estavam um pouco mais distantes, correram na direção do mago, mas ele apenas levantou a mão e com uma palavra fez os dois pararem. Eles arregalaram os olhos e largaram as armas. Incrivelmente eles se jogaram ao chão e rastejaram como se estivessem fugindo de algo desesperadamente. De início não entendi. Mas logo meu coração começou a ficar negro e o medo de algo que não entendia apossou-se de mim. Fiquei paralisado num momento e logo depois estava me jogando embaixo de uma carroça para me proteger de não sei o que.

Num segundo movimento ele abaixou-se, tocando a terra com uma das mãos, e disse algumas palavras tão incompreensíveis quanto as anteriores. Um pequeno redemoinho surgiu ao seu redor movendo muitas folhas e cinzas. Ele levantou-se calmamente e do chão surgiu algo incrível. Foram subindo estalagnites de cerca de um metro e meio do chão, uma atrás da outra, em uma fila que ia na direção dos infelizes presos naquela teia. Eles seriam empalados.

O sorriso estampado no semblante do mago chegava a ser irritante. Mas de repente seu sorriso foi freado. A boca entreabriu e uma estalagnite parou sua subida à centímetros da genitália do primeiro dos empregados da caravana que seria empalado.

Do ventre do mago dava para perceber a ponta de uma lâmina saindo ensangüentando toda a seu ventre. O mago caiu de joelhos, e dali foi ao chão com os braços abertos.

Somente o silêncio agora.

Atrás do mago estava Kalla. Segurava sua espada curta numa das mãos. O outro braço tinha a aparência de estar quebrado. Na verdade ele estava coberto de sangue e com um olho quase completamente fechado pelo inchaço.

“- Com toda a certeza eu odeio magos! Êta criaturinhas mais incômodas!” – disse Kalla numa tosse que veio junto com um pouco de sangue num bom humor desconcertante.

Com a morte do mago a teia sumiu e o terror em nossas almas também. Tudo se acalmou. Agora o peso insuportável da fadiga caiu por sobre todos nós. Aquele peso da perda de amigos e de sangue inocente derramado.

Quase nenhuma palavra foi trocada. Todos tentamos dormir. Poucos conseguiram.

__________ o O o __________

No outro dia não saímos cedo da manhã, como havia sido planejado. Só conseguimos levantar acampamento depois do almoço. O descanso foi merecido. Pouco antes do almoço a patrulha de cavaleiro yudeanos passou por nossa caravana e soube do ocorrido com uma certa surpresa. Chega a ser irônico que quando mais precisamos foi justamente quando não pudemos contar com eles.

Enterramos nossos mortos naquela clareira mesmo. Descansariam ali sob a tutela da mãe Allihanna. Kalla passou o resto da viajem deitado numa das carroças, se recuperando. Ele contou-nos que fora atingido por algum tipo de sortilégio do mago que o deixou desacordado. Ainda inconsciente foi espancado e deixado para morrer num canto qualquer daquela mata.

“- Mas seu erro foi que não se certificaram de minha morte, lentamente eu segui os bandidos e espreite até o momento exato. Eu sabia que o mago era o ponto principal daquele combate” – disse Kalla deitado em sua cama improvisada.

O resto do caminho até Gallienn não foi tão festivo. Todos estavam com as almas pesadas. As pouco mais de cinco horas restantes do percurso foram bem diferentes da noite anterior. Já no início da noite pudemos vislumbrar ao longe as luzes das casas de Gallienn. Meia hora antes já notamos que o fluxo de carroças e o vai-e-vem de cavalos intensificara-se. Muitas pequenas estradas desembocavam na via principal de acesso à cidade trazendo muitos viajantes. Era véspera do grande dia e a cidade estaria cheia com toda a certeza.

Já era noite fechada quando a caravana conseguiu atravessar os portões da cidade depois de responder à uma enorme lista de inquirições dos guardas yudeanos e de uma minuciosa revista. Sullion disse que todo o ano era a mesma coisa. Mesmo eles vindo para as festividades, nos últimos quinze anos, sempre tinham de passar pelo mesmo processo.

As carroças ficavam numa área próxima à praça central onde uma grande feira era organizada. Depois de tudo em seu lugar acompanhei Sir Constant para as despedidas. Enquanto ele conversava dentro da tenda dos donos da caravana eu fiquei esperando do lado de fora.

Quando meu senhor saiu disse apenas para não me demorar e encontra-lo na Taverna do outro lado da rua. Atrás dele saíram Karbos e Sullion.

“- Pequeno amigo, queria lhe agradecer” – disse Sullion – “eu vi o que você fez. Foi algo de muita coragem, além de que eu poderia estar morto não fosse a sua intervenção. O meu povo nunca esquece uma prova como esta” - ele colocou uma das mãos sob o seu manto e tirou um pequeno pano que enrolava algo – “tome este pequeno préstimo como prova de que nunca esquecerei sua ajuda”.

Eu recebi o pequeno embrulho e o abri. Dentro havia um anel. Mas não um simples anel. Era lindo, embora rústico, talhado em algo parecido com osso ou algum chifre. Tinha um símbolo estranho. Testei e coube perfeitamente em meu dedo. Parecia como tendo sido feito sob medida. Agradeci-lhe e recebi um grande abraço que quase partiu-me ao meio. Karbos também foi muito caloroso em sua despedida.

Por fim despedi-me do trio de aventureiros. Kalla ainda estava de cama e deveria ficar assim por mais alguns dias. Trícia e Mikail foram muito amigáveis.

“- Pelo visto iniciaste na vida das aventuras, heim!?! Podes acreditar que depois que tomamos gosto pela coisa é difícil de largar esse vício” – disse Trícia, continuando – “e agora tens todo o reconhecimento do povo anão”.

“- Como assim?” – perguntei.

“- Ora. Não sabes o que recebeste de presente? Este anel serve para que todo e qualquer membro daquela raça saiba que um dia você salvou a vida de um deles. E isso tem grande valor na cultura anã” - explicou ela.

“- Além disso comenta-se que quase sempre esses anéis têm alguma particularidade mágica” – sussurrou Mikail me dando um cutucão leve com o cotovelo.

“- Adeus pequeno Tyrias. Tenho certeza de que ainda vamos nos ver. Afinal, Arton não é tão grande assim!” – proclamou Trícia apertando minha mão e saindo com sua montaria.

“- Isso mesmo. Todos os nossos destinos estão entrelaçados num ou noutro momento. E como proclamas tua simpatia pelo grande deus da justiça – Khalmyr – deves ter sempre em mente que, embora Nimb jogue os dados, ainda é Khalmyr que move as peças!” – disse Mikail, fazendo uma reverência e saltitando para a direção de Trícia.

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Foi um dia para não me esquecer tão cedo. Matei meu primeiro adversário. Não sei ao certo o que isto mudou me mim. Sei apenas que mudei. Pensando melhor eu tenho uma vaga idéia de algo que aprendi com isso. Matar não é bom. Mesmo quando necessário, tirar uma vida não trás nada que nos acrescente algo. Em muitos momentos pode ser a coisa necessária a ser feita. Mas não é bom.

Aqui, deitado agora, fico revivendo aqueles momentos de combate e sangue. Gostaria de não ter que passar por isso novamente, mas algo me diz que nunca mais ficarei longe disso.

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