Parte
1 – Um longo prelúdio -
João
Eugênio Córdova Brasil
V.
Enfim uma luta...
O
Gaivota Prateada singrava o oceano de forma desafiadora e inabalável,
diretamente para o adversário. O mesmo fazia o outro navio. Os ventos
estavam sendo generosos e empurravam Slocun e sua embarcação ininterruptamente
desde que avistaram um ao outro. As feições do adversário já eram bem mais
nítidas. Sua embarcação também era de causar espanto. As velas, muito brancas,
pareciam terem sido recém cerzidas. O casco impecavelmente construído e pintado
brilhava sob a luminosidade da manhã. Em frente, na proa, abraçando o casco até
a altura do mastro frontal, deitava-se uma belíssima escultura de um ser
canino, meio humano meio animal, apontando para o fronte. Era realmente uma
visão belíssima.
- Será realmente uma reconfortante luta senhor
Tugar. Olhe que bela nave esta que nos avança. Dará gosto de combater.
Tugar
escutava a tudo, mas sem responder. Sua atenção estava em muitos lugares ao
mesmo tempo e repassando todas as ordens que deveriam ser dadas em cada
momento. Sua mente era um turbilhão. E, ao contrário de Slocun, que
maravilhava-se com extrema facilidade, ele considerava aquela visão preocupante.
Seu adversário mostrava a imponência de um vencedor. E Tugar sabia que nenhum
combate poderia ter dois vencedores.
-
Preparem-se! –
gritava o capitão – todos sabem o que fazer. Que o grande Oceano nos proteja
e que as bênçãos de Lena nos envolvam até que a vitória seja alcançada.
-
À vitória! –
foi o grito em coro da tripulação que formou-se num uníssono que subiu aos
céus.
Os
dois navios rumavam num ponto de colisão certo. O normal num combate naval
seria que passassem um ao lado do outro onde seria dada a primeira saraivada de
canhões. Imediatamente ambos virariam para estibordo, girando para
re-enquadrar-se e preparando um novo cruzamento. Isso aconteceria até que um
deles estivesse avariado o suficiente a ponto de não poder mais manter o rumo.
Nesta ocasião aconteceria a abordagem dos marujos do navio que ainda estivesse
manobrável. Isso era o que ocorria normalmente. Mas não para Slocun.
Ele
havia aprimorado, nos seus poucos anos de combate, uma técnica tão infalível
quanto arriscada. O Gaivota possuía uma manobrabilidade estonteante. E Slocun
se valia disso. Ele sempre se direcionava, para seu adversário, pelo lado
direito. A manobra consistia em pouco antes de cruzar com o adversário jogar o
Gaivota para estibordo, abrindo certa distância e rapidamente virá-lo para
esquerda novamente. Aos olhos do adversário pareceria que Slocun estaria
tentando uma manobra evasiva para uma fuga. Mas na verdade ele estava
percorrendo um meio círculo que o colocaria cruzando pela popa do adversário.
Neste momento seria dada a primeira saraivada dos canhões direcionadas ao
timão, na ponte, e ao leme. Isso deixaria o adversário imóvel e normalmente nem
seriam necessárias mais quaisquer outras ações dos canhões. E, se fosse
necessário, o segundo cruzamento dar-se-ia pela proa do adversário de forma
igualmente feroz mirando na base das velas dianteiras.A intenção de Slocun era
preservar ao máximo a integridade da embarcação adversária para tirar o maior
proveito possível.
Isso
era o que deveria ocorrer normalmente. Mas não hoje. Os dados de Nimb, ou
alguma outra força incompreensível, tinha desígnios diferentes para eles.
Tudo estava claro na mente de
Slocun. A manobra. A inversão. Os tiros. Tudo. Todos sabiam que a manobra seria
mais ou menos assim e já se agarravam para a brusca virada que estava por vir.
Kankar aguardava o momento da ordem do capitão segurando com firmeza no timão.
-
Agora! –
gritou Slocun provocando uma reação imediata de Kankar, de todos os marinheiros
responsáveis pelas velas e, por conseqüência, do navio. A curva que realizara
quase fez a água entrar pelas amuradas. Era o movimento perfeito. Arriscado.
Impressionante.
Mas
a surpresa foi mais impressionante.
Quase
que como um reflexo espelhado do Gaivota, o outro navio realizou a mesma
manobra, só que invertida, como resposta. Ninguém entendeu nada. Muito menos
Slocun. Ele foi realmente pego de surpresa. Nunca havia visto ninguém
empreender tal contra-manobra contra ele daquela forma - Mas que diabos está
acontecendo aqui? – pensou.
Os
dois navios foram realizando suas curvas até estarem novamente frente à frente
e em grande velocidade. A curva foi tão fechada que estavam à ponto de
colidirem.
-
Ele é louco ou o que? Dois quartos à bombordo senhor Kankar – e uma nova guinada, agora
para o lado oposto, foi imposta ao Gaivota. E de novo o movimento foi espelhado
à exatidão. A resposta do capitão adversário foi tão imediata que seria como se
ambos pensassem da mesma forma e estivessem realizando movimentos combinados
numa verdadeira coreografia.
Passaram-se longos minutos. Muitos movimentos
foram realizados de forma prolixa e exata por ambos os capitães. Era uma aula
de navegação para qualquer academia naval de primeira categoria. E o mais
importante, e por que não dizer curioso, foi que ambos não realizaram nenhum
disparo. Era o ataque perfeito com o contra-ataque igualmente perfeito.
Na
última passagem Slocun começou a rir. Mais do que isso – gargalhar. Ninguém
entendia o que estava acontecendo com o capitão – Senhor Tugar, abaixe as
velas e diminua a velocidade.
-
Como senhor? –
pasmou-se o mestre do navio.
-
Isso mesmo o que escutou, caro amigo. Vamos parar ou ficaremos tão tontos que
não conseguiremos andar em uma linha reta nem em um milhão de anos – e continuava a rir – além
do mais tenho muito interesse em conhecer este tal capitão desconhecido.
-
Vocês ouviram –
saiu gritando Tugar, meio que desconcertado, em direção à ponte – vamos
parar essa banheira!
Imediatamente Listian correu para a ponte com uma
bandeira vermelha e azul, dividida na diagonal, como sinal de uma trégua
momentânea. E o mesmo ocorreu no outro navio.
Um quarto de hora depois ambos os navios estavam
lado-a-lado, a uma certa distância era bem verdade, mas dentro da linha de fogo
de ambos. Dois botes foram ao mar – um de cada embarcação. A conduta dos
piratas dizia que em situações como esta, ambos os capitães se encontrariam em
local neutro – no mar e entre os navios – para discutirem termos que
resolvessem a situação que designaria a trégua. E lá estavam eles. Um se
dirigindo para o encontro do outro junto de mais dois homens de confiança.
Os dois botes, após instantes de breve jornada,
tocaram-se e manobraram até estarem lado-a-lado.
Slocun dirigia um olhar de extrema curiosidade
para a figura no outro bote que aparentava ser o capitão. Um homem vestido
ricamente e com uma bandana negra na cabeça. Estava sentado entre outros dois
homens – um deles vestindo uma pesada capa que cobria-lhe até a cabeça e outro,
do contrário, só de calças e com o corpo coberto por tatuagens.
- Belas manobras – disse levantando-se o homem ricamente trajado.
-
Acho que posso dizer o mesmo
– disse Slocun estendendo a mão para um aperto.
-
Regogizo-me em conhecer tão brilhante capitão – e o estranho apertou a mão de Slocun com grande
força.
-
O mesmo posso dizer
– respondeu Slocun – mas eu realmente gostaria de apertar a mão do
verdadeiro capitão, se não se importa – continuou Slocun virando-se para a
figura encapuzada.
A
surpresa da figura em pé foi desconcertante. Ele não sabia o que fazer naquele
momento. Tentou gaguejar algumas palavras, mas a voz não saia. Slocun sabia que
alguns capitães gostavam de realizar pequenos trotes até reconhecer ou conhecer
o capitão adversário. Até mesmo ele já empreendera tal artifício. Mas a
situação tornou-se insuportavelmente hilária. Todos, menos o desmascarado falso
capitão, caíram em uma risada que encheu com um ar de folgada descontração
aquele pedaço de mar.
-
Eu te disse que não enganaria nem um cego com essa cara – disse o marinheiro desnudo
dando um pequeno tapa no ombro no companheiro que fingia ser o capitão que, por
fim, rendeu-se às gargalhadas.
-
Como descobriste esta pequena brincadeira caro colega de armas? – foram palavras que saíram da
forte figura encapuzada que lentamente ia levantando-se e mostrando ser
realmente alto.
- Confesso que eu mesmo já fiz muitos desavisados
de bobo dessa forma, mas as manchas de pólvora nas mãos dele não me deixaram
dúvida. Considero que um capitão tão habilidoso estaria no convés e não junto
aos canhões. Sou o Capitão Joshua Slocun, de Bielefeld, a seu dispor.
-
Capitão Gares Tyllon, de Prendick. Mesmo tendo uma ótima memória não lembro-me
de ter ouvido falar de fossa cidade. Pertence à algum dos arquipélagos das
Ilhas Dominique ou das Ilhas Colônias? – respondeu de forma calma o capitão adversário
enquanto tirava o capuz da cabeça e tirava, igualmente, o fôlego dos três
membros do Gaivota Prateada.
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