Arquearia IV
- Realidade do
combate com arco I -
Normalmente
estamos acostumados, quando lemos ou assistimos obras de fantasia medievais, em
ver a atuação ímpar dos grupos de arquearia e de como eles podiam mudar os
rumos de um combate. Linhas com dezenas, quem sabe centenas, de arqueiros
lançando ao ar uma chuva de flechas para cair sobre seus inimigos. É
impressionante e, por que não dizer, maravilhoso.
Mas
como historiador e rpgísta sempre fico com uma leve interrogação em minha mente
para confirmar tais fatos. Depois de quase três anos desde o lançamento do
Material de Apoio – Arquearia, postado por nosso colaborador Julio Oliveira,
volto ao tema para reeditar e complementar alguns pontos que considero que
acharão muito interessantes. Esta postagem ganhou ainda mais força e importância
depois do lançamento de um vídeo do arqueiro Lars Anderson, mas que me aprofundarei
em uma postagem paralela.
A
questão básica é: até que ponto a arquearia era realmente importante para a definição
de um combate em massa, ou importante à ponto de desequilibrar para um lado ou
outro. O que estamos acostumados à ver e ler é que após um ataque da arquearia tínhamos
centenas de corpos estatelados no chão, com ou sem armadura. Isso era real?
Vamos ver.
Primeiramente
vamos direto ao ponto de desfazer um mito. As flechas não eram tão eficientes
quanto imaginamos em um combate de massa, mas não deixavam de ser importantes
no resultado final. A ação da arquearia era importante sim, mas não da forma
como estamos acostumados à ver. Se pensarmos nos combates entre exércitos da idade
antiga, principalmente no que conhecemos como Oriente Próximo, duas coisas foram
fundamentais e decisivas para as vitórias – o uso do cavalo e dos arcos. Mas
uma coisa foi determinante para essa importância e atuação tão grande dos arcos
nessa época. O salto tecnológico dos arcos, e seu poder de destruição (acerto e
dano), eram muito superiores ao elemento de proteção da época. Normalmente os
guerreiros daquela época e daquele ambiente não usavam poderosos escudos ou
pesadas armaduras. Muitas vezes a proteção se resumia à um escudo pequeno, quase
um broquel, um elmo e a proteção do corpo com um peitoral de couro, além de uma
proteção também de couro para o braço que usava a espada. Nestas circunstâncias
o disparo de uma flecha era mortal na grande maioria das vezes.
Mas
na Idade Média o caso é muito diferente. Quando pensamos em cavaleiros não
imagino alguém que esteja indo para o campo de batalha sem proteção e essa
proteção é que passou a ser o grande diferencial para a importância e
eficiência do arqueiro.
Como
eu já disse nas postagens anteriores, o arqueiro nessa época era alguém bem
treinado – fosse ele fazendo parte de uma guarda ou exército, com seu intenso
treinamento, fosse ele um camponês, com seu treinamento na lida diária desde a
mais tenra idade. Eles sabiam como usar e os efeitos de seus disparos. Do outro
lado nós tínhamos os cavaleiros que também sabiam da letalidade de um disparo
de arco sem a proteção devida e tinham o conhecimento de como se proteger.
Embora eu pretenda ainda lançar o Material de Apoio para armaduras e
vestimentas medievais, darei aqui uma explicação básica.
Os
cavaleiros da época usavam nada menos do que uma proteção tripla composta de
uma armadura de placas de metal, uma cota de malha e por uma roupa acolchoada
de algodão (aketon). Era um verdadeiro sistema de camadas de proteção muito
eficiente. Mas o grosso da infantaria não tinha recursos próprios ou do seu
senhor para ter uma armadura completa, então eles se protegiam com apenas duas
camadas – o aketon e com a cota de malha. E isso já era mais que o suficiente e
por essa proteção dupla é que vamos analisar a importância do arco em campo de
batalha.
Toda
a proteção começava com o aketon (também conhecido como arming doublet e muito comum a partir do século XV). Ele era um
camisão acolchoado feito de múltiplas camadas de algodão (pelo menos 25 camadas
de tecido de algodão costuradas de forma acolchoada). Sua função era, por
incrível que possa parecer, a mais importante das duas camadas (ou no caso dos
cavaleiros, das três camadas). Ela não só servia para absorver o impacto direto
ao máximo sofrido pelo cavaleiro, quanto para tentar frear a penetração de uma
flecha ao máximo. Por cima do aketon tínhamos a cota de malha feita de anéis de
metal entrelaçados. Ele era pouco efetivo contra as flechas, sendo muito eficaz
contra lâminas. De qualquer forma o conjunto era um problema para uma arquearia
ofensiva.
Por
que todo este rodeio de informações? Um dos mitos que temos é que imaginamos
(ou vemos em filmes e lemos em livros de fantasia) aquela grande linha de
arqueiros disparando para o alto para atingir um grande número de alvos,
matando-os, à longa distância. Como eu disse, isso é um mito. Poderia funcionar
muito bem contra exércitos antigos com sua precária proteção (quando tinham
alguma), mas era ineficiente em combates medievais (tal qual com os de
fantasia) mis elaborados. À longa distância as flechas não teriam força
suficiente para qualquer tipo de dano significativo à um cavaleiro protegido,
sendo um desperdício de munição. Para terem uma idéia baseada em números, uma
flecha disparada à cerca de vinte metros de distância de um alvo com essa
proteção dupla, não penetraria nem causaria dano por perfuração. Incrível não
é? Mas isso significa que as flechas eram ineficazes? Não, muito pelo
contrário. O que temos aqui é uma verdadeira batalha, mas de conceitos e de
desenvolvimento de tecnologias de guerra, além de pura estratégia ancorada em
conhecimento de campo de batalha.
Então
os arqueiros se viram obrigados a atuar muito mais próximos do combate em si do
que imaginamos, descartando aquela linha enorme de arqueiros protegidos pela
distância. Daí você pode me perguntar: mas se o disparo não é capaz de
atravessar a proteção do guerreiro ou do cavaleiro, por que raios eles iam para
o campo de batalha e ainda por cima muito próximos da ação? Pois embora eles
não perfurassem as proteções do adversário, atingindo sua carne, eles causavam
sim dano, e muito sério, mas por concussão. A dupla proteção poderia proteger
da perfuração da flecha e mesmo absorvendo parte do impacto, transferia o
restante deste impacto para o corpo. Para terem uma idéia, no mesmo exemplo que
usei anteriormente sobre a ineficiência de um disparo à cerca de vinte metros
para penetrar o corpo do alvo, essa mesma flecha seria capas de transferir para
o corpo um impacto de cerca de 136kg, o equivalente ao impacto direto de um
projétil de um Magnun 44. Isso já seria capas de causar dano interno
considerável, além de muita dor. Agora imaginemos que um arqueiro era capaz de
disparar cerca de doze vezes em um minuto com um arco de 100 libras. Se
tivermos um pequeno grupo de cem arqueiros disparando incansavelmente por
apenas alguns segundos, que seria o necessário para um guerreiro tentar cruzar
esses vinte metros que o separa dos arqueiros, já teriam sido disparadas algumas
centenas de flechas com este enorme impacto atingindo os guerreiros adversários
diretamente.
Isso
significa então que as flechas nunca perfuravam esses guerreiros? Claro que
não. Sempre poderia haver algum dano no rosto, em pequenas falhas das proteções,
nos membros inferiores ou mãos, mas o principal de sua atuação era por impacto
direto no tronco. Essa era a verdadeira força dos arqueiros no campo de
batalha. Eles eram mortais, mas não por simplesmente perfurar seus adversários,
mas por causar-lhes dano substancial.
Vamos
à uma segunda informação muito interessante e que parecia novidade até poucos
dias atrás - o tiro duplo de flechas. Lógico que os cavaleiros e soldados à pé
estavam cientes deste efeito do dano por concussão infringido pela arquearia
que apresentei no texto acima. Então nunca foi tão importante quanto naquele
momento o uso de escudos pesados e longos. Se já era complicado atingir danosamente
um alvo com toda aquela proteção, com o uso do escudo seria quase impossível. O
artifício utilizado pelos arqueiros era o tiro duplo de flechas, algo muito
comum na época (embora em certo vídeo badalado parecesse ser algo novo). O tiro
duplo consistia em disparar duas flechas em sequência rapidamente, a primeira
para cima em um movimento de arco e logo em seguida uma em linha reta, paralela
ao chão. A arte do arqueiro estava em realizar esse disparo de forma calculada e
sincronizada para que ambos os disparos chegassem ao alvo ao mesmo tempo. O
soldado ou cavaleiro teria que se preocupar com duas flechas contra ele, uma
vindo de cima e outra pela frente. A intenção era de que o defensor se
atrapalhasse na defesa e em algum momento oferecesse uma breca para o ataque do
arqueiro. Se o defensor estivesse com proteção de menos, o efeito do ataque duplo
seria ainda mais devastador, pois uma das duas flechas inevitavelmente
atingiria o alvo.
Com
tudo isso que apresentamos é compreensível a importância dos arqueiros em
combate entre exércitos mesmo com esta peculiaridade do dano por concussão.
Além disso, é óbvio que disparos à longa distância, em arco, aconteciam, mas
eles tinham o objetivo muito mais de deixar afastados os adversários e de, se
possível, ter a sorte de atingir algum desprotegido.
Lógico
que tudo isto que apresentamos era relacionado à combate campal principalmente.
Se o combate fosse para o cerco ou ataque de uma fortificação, ou defesa dela,
as funções seriam muito diferentes. Inclusive a escolha do tipo de ponta de
flecha utilizada variava conforme a ação e intenção do combate. Mas isso é um assunto para outra postagem!
Um comentário:
Imensamente útil esse tipo de informação. Não passou pela minha cabeça que na verdade a mecânica do combate fosse essa. E caramba, 136kg...
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