Cobrar ou não cobrar? Eis a questão!
- debate sobre cobrar para mestrar mesas de RPG -
O
debate dessa semana na comunidade rpgistica do Brasil volta a ser a cobrança
para mestrar sessões de RPG. A discussão começou após uma postagem em um grupo
de D&D (se não me engano, pois não a localizei novamente... acho que foi
apagada) onde um rapaz se disponibilizava à mestrar sessões de RPG de diversos
sistemas. O valor seria de R$ 100,00 reais para quatro sessões mensais (1 por
semana) de quatro horas cada. Após a postagem tivemos críticas ou apoios em
muitos perfis pessoais, grupos e páginas.
Os
grupos se formaram mais ou menos sobre dois discursos distintos onde muitos dos
meus amigos estavam espalhados por ambos os lados. Primeiramente quero deixar
claro que o debate não é de forma alguma maniqueísta, não há mocinhos ou
bandidos, certo ou errado. Isso é importante para que não fiquemos procurando o
lado certo da história.
Para
aqueles que são contra a cobrança um dos
argumentos é de que o RPG é um jogo colaborativo e como tal precisaria de uma
igual cumplicidade e participação de mestre e jogadores para que ele se
desenvolvesse de forma adequada. Em um jogo de RPG ambos os lados ganham com a
diversão e com a participação. Com isso, cobrar para a tarefa de mestrar seria
uma relação desigual entre as duas partes, onde o mestre estaria tendo vantagem
para uma tarefa que não cabe por inteiro à ele.
“Se tem mestre profissional, tem jogador
profissional também. RPG é um jogo colaborativo. Não tem jogo sem jogadores,
apesar de ter jogos sem mestre, e aí? Vamos cobrar para jogar com esses mestres
também?” (...) “Eu entendo empresas pagarem para divulgar
o jogo, para publicidade, para uma empresa. Se o propósito do jogo tiver a ver
com "grana", então faz sentido ter remuneração. Agora se o propósito
for uma experiência lúdica, pela natureza cooperativa e interdependente de
todos os participantes, cobrar para mestra é sim uma exploração oportunista. Tu
não consegue mestrar sozinho. Você precisa dos jogadores."
Do
outro lado do debate temos aqueles que não têm
problema com o pagamento de mestres para conduzirem aventuras de
RPG. Esse grupo argumenta, entre outras coisas, que não deixa de ser algo
válido pela dedicação do mestre em relação ao estudo das regras e sistemas,
preparação da aventura e tempo gasto na sessão. Muitos exemplos aparecerão em
algumas postagens sobre como já foram remunerados pela atividade de mestre.
“Em 2006
eu estava ainda na LUDUS CULTURALIS quando a Roche do Brasil nos contratou para
irmos até Santiago do Chile e fazermos uma dinâmica de grupo com RPG, focando
trabalho em equipe e criatividade na resolução de problemas. Tivemos que levar
dois narradores (eu incluso) e contatar uma narradora lá para, essencialmente,
narrar RPG. Uma aventura especificamente criada e elaborada para a
atividade. Em 2003 fomos contratados pela prefeitura de São Paulo para
mestrar RPG para frequentadores das bibliotecas das unidades do CEU, em São
Paulo. Os narradores tinha que ser preparados para aventuras instantâneas, com
crianças que nunca leram um livro, em distantes locais de São Paulo. Houve fins
de semana em que eu precisava de trinta narradores trabalhando simultaneamente
em toda capital. Em outra ocasião fomos contratados pelo Banco do Brasil
para uma atividade com RPG em que fosse trabalhada a questão do preconceito.
Uma aventura especificamente criada e desenvolvida com esse objetivo. É claro
que fizemos MUITO mais atividades gratuitas e voluntárias. Eu mesmo já fiz
Oficinas de Formação de Narradores de RPG remuneradas. E para cada uma
remunerada, fiz outras cinco ou seis gratuitas. Cada um ou uma tire a
conclusão que quiser, mas vamos analisar todos os lados da questão” – Jaime Daniel Rodriguez Cancela.
“Aproveitando
para explicar... Eu quando desenvolvi as primeiras mega mesas do EiRPG eram por
minha conta... Star Wars - Operação Corona Fire, 7th Sea - Mares de Sangue e
Ninja Burger foram de criação minha e investimento de meu bolso. Após isso, a
Devir me convidou para remodelar o Desafio D&D e aí sim recebi um dinheiro
pelo meu esforço que foi dividido pela equipe que treinei de mestres e outros
amigos que me ajudaram na coordenação. Depois disso, realizei o lançamento do
Mutantes e malfeitores para a jambo que não tinha dinheiro pra me pagar, na
época pedi livros para meus dez mestres que coordenaram sessenta players em uma
aventura que criei de nível épico em uma cidade de miniatura de três metros por
três metros que construí com meu dinheiro. Sem investimento externo nesse
último. Eu acho justo cobrar por um serviço que você tenha desde que o mesmo
seja de qualidade. Afinal é entretenimento! A quantidade de players que não tem
alguém para mestrar uma boa aventura é uma parcela grande da situação atual.
Como falei, se o serviço é de qualidade, capaz de entreter e dar ao player um
quality time inesquecível, o investimento é totalmente válido” - Alessandro Franzen.
Eu
particularmente não vejo problema algum em um mestre cobrar para conduzir uma
ou mais sessões de RPG. Ao mesmo tempo entendo perfeitamente o ponto de vista
de quem critica tal opção. As sessões de RPG sempre foram um encontro de amigos,
uma forma de conhecer pessoas e uma oportunidade de vivenciar uma nova
experiência. Fossem em um evento, numa loja ou na casa de alguém, eram momentos
para fugirmos de nossas vidas e entrarmos em um novo mundo com pessoas que
tinham gostos afins. Aliado à isso o RPG em si é um momento de desenvolvimento
criativo, lúdico e interpessoal em que ele precisa de uma relação de todos os
participantes para que “funcione” adequadamente. Então, quando chega alguém
dizendo que vai cobrar por algo como mestrar RPG, para muita gente parece até
uma heresia onde o essencial passou a ser o dinheiro.
Claro
que me incomoda a monetarização do RPG, algo que temos visto muito no seu meio
nesses últimos tempos, algo que ainda faz dele um hobby excludente e de nicho
reduzido. Ok, sei que RPG é um negócio e depende de um mercado e que tudo isso
gira em torno de dinheiro. Quem me acompanha sabe de minhas opiniões pessoais
sobre como o RPG deve ser o mais aberto, popular e agregador possível. Ao mesmo
tempo sei de suas características como um produto, mas não vejo a cobrança para
mestrar mesas como algo que reforce isso.
Cobrar
para mestrar é um serviço. Alguém se disponibiliza a servir como mestre por um
valor determinado e dentro de alguns parâmetros delimitado por um acordo de
ambas as partes – mestre e jogadores. Mas esse serviço não é obrigatório ou
imposto. Quem desejar se valer dele o solicita. Entendam que a existência de
mestres que cobram não diminui em anda a opção das pessoas comprarem seus
próprios livros e jogarem à exaustão sem gastar nenhum centavo. A cobrança não
está restringindo acesso ao conhecimento ou impossibilitando que qualquer um
seja mestre, está apenas disponibilizando um serviço para quem desejar pagar
por ele. Hoje em dia tenho visto muita gente dizendo que não tem tempo para
organizar uma campanha, ou mesmo novatos que estão entrando agora no meio e
desejam uma experiência mais reforçada de sessão. Para eles funciona muito bem
esse “serviço” prestado.
Mas
e a questão do papel colaborativo que exercem mestre e jogadores para
desenvolver a história? Concordo que existe um elemento essencial de
colaboração entre as duas partes para que o jogo se desenvolva, mas não nos
esqueçamos que há atribuições distintas entre mestre e jogadores. Por mais que
o jogador colabore na condução do jogo e em sua relação retroalimentativa com a
aventura, ele ainda poderá ter chego à mesa sem conhecimento ou preparo prévio
algum e ainda assim o jogo acontecerá. Mas normalmente o mestre precisou de
algum preparo no estudo e entendimento das regras, na elaboração da aventura e
tudo relacionado à ela, produção de acessórios etc. Um jogador sem conhecimento
algum e o jogo flui, um mestre sem preparo ou estudo do sistema/aventura e nada
anda.
Mas
e a qualidade do mestre e do serviço prestado? Isso é muito difícil de ser
avaliado, pagando ou não. Não considero que cobrar seja o fiel da balança. O
elemento que dirá se a qualidade está adequada é o quanto o grupo se divertiu e
aproveitou a sessão e mesmo assim ainda não é um indicativo consistente de
qualidade. Quando contratamos qualquer serviço, principalmente aqueles que não
são para produção de algo material, a qualidade passa a ser um elemento de
subjetividade – e isso não está atrelado ao ato de cobrar ou não pelo serviço,
mas sim do resultado imaterial. As variáveis são muitas nesse caso, inclusive
passando pelo fato de ser um ato colaborativo, como já mencionado.
Quantas
vezes já jogamos com mestres (sem cobrar) reconhecidamente de qualidade e suas
aventuras não engrenaram? Quantas vezes jogamos com aquele mestre, nosso amigo
de anos que semana após semana levava a sessão, e em algumas oportunidades o
jogo não vingou? Quantas vezes estivemos em mesas de mestres conhecidos e
amigos e ele foi displicente e realizou um jogo mal preparado? Quantas vezes
fomos à eventos só para participar de uma mesa com algum rpgista famosão e a aventura
não nos encantou? Todos já passamos por isso. E tudo isso não aconteceu pelo
fato de cobrarem ou não cobrarem pela mestragem. Com certeza um mestre meia
boca – despreparado, displicente, ranzinza, mal humorado ou possessivo com
relação à sua aventura - terá problemas na condução de sua mesa e muito
provavelmente não será chamado novamente pelo grupo de jogadores – como acontece
em qualquer situação onde selecionamos de qual mesa participaremos ou não.
Embora
possa parecer uma loucura, estamos cobrando pelo serviço e não pela garantia de
qualidade. E se pensarmos bem isso acontece com qualquer tipo de serviço
contratado. É de nosso interesse (é óbvio) que esse serviço seja o melhor
possível já que estamos pagando. Ao mesmo tempo é de interesse de quem presta o
serviço que ele seja de qualidade, pois isso propiciará que ele tenha mais
clientes. Posso me arriscar a dizer que este tipo de prestação de serviço é um
risco para ambos os lados.
Mas
isso pode matar a espontaneidade do RPG? A cobrança para mestragem é uma opção
para quem necessite dela. Qualquer um ainda pode começar sua carreira de mestre
com um simples livro ou pdf, muita boa vontade e um grupo de amigos. As pessoas
ainda vão se juntar e criar novas amizades com as sessões de RPG semanal nas
casas de amigos, eventos ou lojas. A espontaneidade é uma questão das pessoas
em si.
Este
tema trás um debate interessante tal qual outros que volta e meia vêm à tona –
pirataria, RPGs importados, interpretação, preconceito, sexismo, monopólio e
por aí vai. No final das contas o ponto convergente entre este tema de cobrança
para serviço de mestre e todos esses outros exemplos é mesmo – as pessoas e
seus valores. Enquanto vermos o RPG por todo o seu potencial, por tudo o que há
positivo e agregador nele, por sua capacidade como formador de caráter, por seu
viés como meio para compreender e contestar a realidade, pela sua necessidade
de ser acessível à todos e não apenas há um grupo com um certo perfil da
sociedade, então ele estará no caminho certo.
Bons
jogos!