PARTE 1 - Um longo prelúdio -
João "o escriba" Brasil
IV. Um encontro
O alerta veio do alto da gávea como um trovão inesperado que precede a tempestade. Todos pararam como numa brincadeira infantil de estátua. Os olhares foram concentrando-se em Listian, que apontava para estibordo, e iam desviando para o horizonte oriental acompanhando a indicação do vigia.
O capitão Joshua Slocun correu para a amurada e num salto colocou-se sobre ela agarrando uma das tantas cordas que prendia as velas frontais. De luneta em mãos passou a vasculhar o horizonte à procura de algo. Tugar, que estava próximo à ponte, subiu as escadas e estreitou os olhos para tentar encontrar algo.
- Onde está? – gritou o capitão para Listian.
- Um pouco mais para nordeste, senhor!
Lá estava ele. Um ponto no horizonte, mas claramente uma embarcação. Ainda era cedo para saber o que era, ou se era amigo ou inimigo. Mas era mais do que o suficiente para fazer o sangue pirata ferver, o sabor do butim chegar à garganta e o frenezi do combate alcançar seus pensamentos. Slocun foi acompanhando o movimento da distante embarcação, no horizonte, rumo norte – para longe do Gaivota. Mas de repente começou a mudar seu curso para oeste. Haviam visto o Gaivota e Slocun não podia dizer que não estava desejando isso.
- Ele mudou de rumo. Vem ao nosso encontro. Senhor Tugar, dê o alerta. Vamos desenferrujar as juntas!
Os gritos da tripulação poderiam chegar aos deuses. Eram gritos de jubilo pela contenda que estava por vir. Só havia três coisas capazes de apaziguar o espírito de uma tripulação à tanto tempo no mar – mulheres, rum e um bom combate, e não necessariamente nesta ordem.
O Gaivota fervilhava. Homens surgiam de todos os lados. Subindo e descendo pelas cordas no preparo do velame. Tugar corria de um lado para outro como um louco jorrando ordens para cada membro da tripulação. Seu contramestre já havia tomado seu posto junto aos canhões, nos dois andares abaixo do convés, e colocava tudo na mais perfeita ordem.
Toda a sorte de espadas, adagas e alguns daqueles estranhos mecanismos de pólvora – os mosquetes - passavam de mão em mão encontrando seu destino em combatentes ansiosos por ação. Muitos arrancavam as camisas ou amarravam os longos cabelos para facilitar o combate. Todos estavam se aprontando para a contenda.
Slocun corria tanto quanto seus subordinados ajudando-os nos preparativos. Listian à todo o instante gritava, da gávea, novas informações sobre o posicionamento e direção do adversário. Kankar, do timão, gritava para seus ajudantes prepararem uma barreira para protege-lo de ataques à distância.
- Senhor! – gritou Listian depois de alguns minutos – vejo a bandeira, é negra como a noite.
- Outros piratas, camaradas – soltou um jubiloso grito aos marujos. Embora não fosse comum gostavam de uma queda-de-braço contra irmão de profissão pelo simples prazer de cantar vantagem nas tavernas de onde aportavam. – Algum símbolo criança?
- Sim, senhor. Uma cabeça de lobo.
A informação deixou Slocun muito curioso. Primeiro uma bandeira com uma marca de pata de animal, algo que nunca houvera escutado até aquele dia. Agora uma nova bandeira com um símbolo animalesco. Mas o que dizer se eles mesmos tinham um animal como nome do navio e talhada em sua proa – uma vistosa gaivota. Slocun não conseguia mais conter sua ansiedade pela hora do combate.
Tugar, que agora já estava um pouco mais clamo, postara-se na proa para ver melhor seu adversário. Qualquer informação seria importante.
- Reunião! – gritou Slocun no centro do convés. Prontamente dirigiram-se para ele o mestre, seu contramestre, o timoneiro, o clérico e o responsável pelos reparos. Antes de qualquer combate todos os responsáveis reuniam-se no convés para preparar a estratégia do combate e receber as últimas ordens.
- Senhor, é uma embarcação que lembra um Clipper. Rápido e fácil de manobrar. Comporta uns trezentos homens em seu total – colocou Tugar – mas de casco mais frágil que o nosso e somente uma linha de canhões de cada lado.
- Ótimo. Sua vantagem é a velocidade – pensou em voz alta Slocun – senhor Rudolph, conseguiria uma saraivada de tiros na primeira passagem, em ordem, na zona da proa?
- É claro que sim.
- Linha de cima na ponte na primeira passada, linha de baixo no leme e no casco, próximo à linha d’água, na segunda passada.
- Sem problema – respondeu o contramestre que de pronto saiu correndo para sua posição sob o convés.
- Kankar, repita o movimento que fizemos para afundar aquela corveta de Deheon no último inverno. Hahahah.... pelo que sei até hoje estão tentando explicar para o imperador bigodudo o que aconteceu!
- Sim, senhor – respondeu Kankar também correndo para seu posto.
- Quero os homens preparados para abordar o navio após a segunda passagem, logo após a segunda saraivada dos canhões, se ele ainda estiver boiando, é claro.
- Todos os outros sabem o que fazer. Em seus postos! Vamos rachar umas cabeças!
Faltava pouco.
o O o
O vento estava à seu favor e Slocun tinha consciência da vantagem que isto lhe conferia. Estavam à mais de vinte e um nós, quase um quarto à mais do que seu adversário. Estava tudo perfeito. O gaivota quase voava sobre as ondas, tamanha sua velocidade. As ondas quebradas, em sua passagem, levantavam grossas nuvens de água que avançavam por sobre o convés deixando todos encharcados.
O Gaivota Prateada era um galeão espetacular. Sua madeira era de um tom escurecido que dava a impressão de ver-se uma sombra pairando sobre a água. Muitos brincavam dizendo que de prateado havia somente o nome, estaria mais para um corvo agourento. Seus três grandes mastros apontavam para os céus sustentando uma infinidade de velas – quadradas e triangulares em tons que iam do branco ao creme claro – e um emaranhado sem fim de cordas criavam um aspecto confuso. Possuía uma série de 30 canhões dispostos em linhas duplas, oito acima e sete abaixo – em cada lado. Era uma máquina de guerra tão perfeita quanto mortífera.
Em todos os locais por onde passava sempre atraia olhares que iam da inveja ao encantamento, do medo ao deslumbre. Em portos comerciais da parte oriental de Arton tais como os de Wynnla, Hongari, Porstmouth ou Bielefeld – entre tantos outros – o nome Gaivota Prateada trazia arrepios e lembranças de inúmeras cargas pilhadas. Também o nome Joshua Slocun não passava desapercebido. O capitão do Gaivota era sinônimo de destreza no uso das velas, percepção apurada no entendimento dos elementos do mar e sobre tudo honra. Embora fosse um pirata seguia um código de honra e exigia que todos os seus subordinados o seguissem. Dele não tinham medo, mas uma sutil admiração.
o O o
Quanto à embarcação adversária Slocun sabia pouco. Como a tudo nesta região desolada e afastada do Reinado. Reconhecia o navio – um Clipper. Já enfrentará muitos e vencerá todos. Mas este era um ambiente que, embora não concordasse, lhe dava poucas informações. Além disso, não reconhecia o adversário. Muito menos conseguia vê-los no convés do navio. A bandeira negra que hasteavam no mastro principal – com aquele símbolo curioso - não lhe dizia nada. Tudo estava estranho. Como tudo naqueles últimos dias. Desejava apenas a luta. Algo que conseguisse reconhecer. Algo que o tranqüilizasse.
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