PARTE 1 - Um longo prelúdio -
João Eugênio Córdova Brasil
III. O estranho
A imagem era perturbadora. Não por ser
algo aterrador ou perigoso, mas por ser algo que não compreendiam. Era algo
totalmente novo. O quadro todo, na verdade, era perturbador. Tanto em sua
cabeça, quanto na de Syan, os detalhes não possuíam ligação alguma. Syan
mantinha-se debruçado por sobre o cadáver segurando as pálpebras de um dos
olhos abertas. Slocun mantinha-se imóvel, fitando de maneira séria os
movimentos cuidadosos de seu amigo.
A camisa do morto, em farrapos,
deixava transparecer seu peito, apresentando características peculiares. Ele
possuía, espalhadas pelo peito e barriga - e agora percebiam que até por partes
do braço - manchas pretas em formato ovalado. Elas tinham tamanhos diversos e
iam do pescoço à cintura. Além disso, toda extensão do corpo possuía uma fina
camada de pelos bem finos e levemente alaranjados. Eles engrossavam e sobressaiam
mais nos locais onde havia as manchas.
Havia também os olhos. As íris do
estranho, visíveis enquanto Syan as estudava, pareciam terem sido tiradas de
algum animal. Eram lindas ao mesmo tempo que estranhas. Talvez mais exóticas
que lindas. Possuíam uma coloração avermelhada ocupando o centro de um globo
ocular amarelado. Aqueles olhos eram algo novo também.
Todos naquele barco já haviam visto um
pouco de tudo, no que diz respeito à criaturas. Lutado contra globinóides,
seres marinhos monstruosos e estranhas criaturas nas ilhas que por ventura
ancoravam. Até os olhos dos nativos de Collen – mesmo estando do outro lado de
Tyrondir – não eram tão curiosos quanto estes. Havia algo à mais neles
- Acho que isto não é normal, não é Syan? – comentou Slocun após alguns
momentos de silêncio.
- Com
toda a certeza não. Que acha?
- Vamos
nos reunir em minha cabine. Enquanto isso chame Hillan. Ele é de Collen e,
embora tenha apenas um olho, se o assunto são olhos curiosos ele é a pessoa
mais indicada para nos elucidar algo – ordenou Slocun enquanto dobrava a
bandeira pirata misteriosa e dirigia-se para a porta – Reunião em quinze minutos.
Syan saiu logo atrás do capitão, aos berros
chamando pelo marinheiro colleniano, enquanto uma multidão se aglomerava na
porta tentando ver alguma coisa naquela saleta que pudesse justificar tal
gritaria. Além disso, havia a carranca do capitão. Uma coisa que incomodava os
marinheiros do Gaivota era a carranca de Slocun. Era assim que chamavam o senho
do capitão quando preocupado. Isto sempre lhes indicava um mau presságio ou
problemas á vista.
o O o
- Realmente
não sei o que se passa. Nunca vi nada igual – esse era o pronunciamento
final de Syan frente aos principais membros da tripulação do Gaivota Prateada
depois de toda uma explanação cheia de dados técnicos – Em todos os meus estudos nos templos de Tanna-toh não me lembro de ter
visto nada relacionado a isto.
Muitos poderiam se pergunta o porquê
de todo este alarde devido apenas a um par de olhos estranhos e pintas
espalhadas pelo corpo. Não seria nada de mais. Mas para os homens do mar, a
milhas de qualquer terra firme, o que lhes mantêm vivos é a segurança de
estarem certos de tudo ao seu redor. Não estão em condições de errar.
Necessitam e procuram ter todas as possibilidades à mão. Por isso ficam tão
desnorteados quando algo totalmente improvável ou impensado lhes ocorre. São
homens que estão prontos para batalhas de última hora ou enfrentar uma
tempestade sem aviso. São coisas que dominam bem. Mas o inesperado – ainda mais
no meio do nada – lhes assusta.
- Já
viu algo assim mestre? – Slocun disse virando-se para Tugar.
- Nos
meus cinqüenta anos de mar não senhor. Já ouvi de pragas que podem ocorrer num
navio à seres monstruosos protegidos pelo deus Oceano, mas nada parecido com
isso.
- E
você Hillan?
- Em
Collen os olhos dispares, ou com cores fantásticas, são algo totalmente comum.
Mas há algo diferentes naqueles olhos. Parecem que foram colocados naquele
homem. Não parecer ser nada humano.
Um silêncio pairava no ar. Mais pesado
que a fumaça dos cachimbos e cigarros de palha que impregnavam o ar do restrito
ambiente com odores típicos de Hongarin.
-
Ainda há a estranha pele dele e a curiosa dentada no braço – quebrou o
silêncio Syan – que não parece ter sido
feita por algo marinho. Pode ter sido um cão. Não é incomum ver cachorros nos
barcos. Mas, para conseguir arrancar um braço de um homem de uma vez deve ser
um senhor cachorro.
Mais um momento de silêncio
perturbador.
- E
quanto à bandeira. Alguém tem alguma idéia de a quem pertence. Já ouviram falar
daquele símbolo?
Um não simbolizado pelo manear das
cabeças em silêncio não enganava Slocun. Estavam em frente de algo totalmente
desconhecido. Eram muitas curiosidades e dúvidas para um evento só. Algo estava
para acontecer. Ele sabia disso.
Naquela noite não houve sossego. O
imaginário dos tripulantes viajou por todos os cantos da mente. Os medos
surgiram em meio à sussurros sobre os acontecimentos daquele dia. Conforme ia
passando de tripulante à tripulante, a estória ia ganhando contornos cada vez
mais assustadores e maledicentes. A tranqüilidade inicial ia tornando-se cada
vez mais rarefeita. O medo estava estampado no rosto de cada marujo.
Por sua vez Slocun colocou um vigia à
mais no convés, de olhos bem abertos, ajudando a quem estivesse na gávea. Para
Syan solicitou alguns encantamentos de proteção e de alarme para lhes dar maior
segurança. Havia algo de errado mesmo sem ter certeza do que, mas não queria
ser pego de surpresa.
Mas aquela noite passou. Assim como as
próximas. O nervosismo inicial transformou-se em calma, e a calma
transformou-se em tranqüilidade. O marinheiro morto, levado à bordo, recebeu um
funeral digno e as coisas encaminharam-se novamente à normalidade. E não se
tocou mais no assunto.
Já se passavam cinco dias desde o encontro
com o náufrago perturbador e nada acontecia. Era água para todos os lados em um
horizonte sem fim. Nenhum sinal de vida. Tugar estava preocupado. As provisões
estavam escasseando e em breve necessitariam racioná-las. Seu contramestre –
Rudolph - estava incumbido de controlar tudo o que saia da dispensa e cada gole
de água que bebessem. Suas preocupações já haviam sido passadas para o capitão.
E hoje era o dia decisivo. Era o limite. Se voltassem hoje conseguiriam chegar
ao último local disponível para pegar alguma água e mantimentos.
E Slocun estava em seu refúgio.
Pensando.
- Senhor...
– gritou Listian, o pequeno infante – Mestre
Tugar espera suas ordens, senhor!
- Já
vou descer!
Chegando ao convés o capitão recebe
Tugar que vem correndo ao seu encontro. Estava claramente mais nervoso que o
normal – não que isto fosse alguma novidade.
- Quais
as ordens, senhor? Seria prudente voltarmos enquanto podemos.
- Pelo
menos a viajem não foi de toda em vão, Senhor Tugar. Tome os preparativos para
retornarmos para casa. Meu fumo está acabando, vamos para Hongari.
- Sim
senhor! – disse Tugar mesclando alívio e euforia em suas palavras.
As palavras do capitão pareciam terem
tirado um peso dos olhos e das costas de Tugar. Desde o início ele não gostara
da idéia de saírem dos limites norte das cartas náuticas conhecidas em Arton.
Mas agora estavam voltando para casa.
- Vamos
agradar o capitão e colocar esta banheira para andar de volta o mais rápido
possível, mexam-se! – esbravejava Tugar – Icem todas as velas. Kankar, sabe o que fazer! A toda velocidade.
Mas às vezes parece que os dados de
Nimb pregam-nos peças. Umas agradáveis, outras nem tanto. E algumas totalmente
dispensáveis. O mestre matreiro e enlouquecido tem a capacidade de fazer suas
jogadas nas horas mais impróprias – impróprias para os reles mortais, é claro.
-
Embarcação à vista! Embarcação à vista!
Um comentário:
Segue ótimo
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