segunda-feira, 20 de abril de 2015

Material de Apoio - Arquearia V: realidade no combate com arco II


ARQUEARIA V
- Realidade do combate com arco II -

Vamos continuar nossa jornada pelo universo da arquearia depois de um ínterim e retornar ao tema do combate e, mais especificamente, do dano causado por flechas. Vamos rever o que já vimos até agora. Alguns elementos quando do disparo de flechas são diretamente ligados à intensidade do dano causado:

- Material utilizado pelo arqueiro: tipo de arco, tipo de flecha, tipo de ponta de flecha, tudo isso tem grande influência no dano. Já vimos em postagens anteriores que todos esses elementos podem modificar o tipo e força do dano.

- Tipo de proteção: conforme o tipo e quantidade de proteção do alvo há uma quantidade de dano.

Agora vamos ir um pouco mais à fundo em dois dados que comentamos na postagem anterior: o ângulo do impacto e a profundidade da penetração da ponta da flecha.

Já havíamos comentado na postagem anterior que existem duas formas de flechas serem lançadas, principalmente em campos de batalha – em arco ascendente/descendente ou em linha reta. No primeiro deles o arqueiro gradua a força na tensão da corda conforme a distância de seu alvo, enquanto que no segundo o arqueiro realiza sua puxada, tensionando a corda do arco, com máxima força. Em resumo na primeira forma temos menos força de impacto e na segunda mais força. Acho que não precisamos entrar aqui em questões matemáticas para corroborar essas informações, o importante é termos clara essa noção para juntar tudo isso em um ponto congruente – o dano.

Conforme já vimos, o dano das flechas por perfuração em campos de batalha era muito menos eficiente do que imaginavamos. Com a proteção adequada de um cavaleiro ou de membros da infantaria, o dano era minimizado ao máximo. Se acrescentarmos aqui o uso de escudos, temos menos dano ainda. O uso de duas das três camadas possíveis – acolchoado de algodão, cota de malha e proteção de placas – fazia com que a periculosidade das flechas fosse diminuindo.

Isso significa que as flechas eram ineficientes? Claro que não, mas ao mesmo tempo temos que relativizar sua eficiência. Muitos teste já foram feitos por historiadores e especialistas em armas para averiguar níveis de dano e eficiência. Um dos mais completos foi realizado por Matheus Bane, em 2006, que gerou uma pequena publicação intitulada “English Longbow testing agaisnt various armor circa 1400”. Ele realizou testes disparando flechas iguais, a partir de um longbow clássico inglês de 75 libras, com quatro tipos diferentes de pontas – broadheads dos tipos 13 e 16, needle bodkin do tipo 7 e short bodkin do tipo 8 (veja as imagens abaixo).


O alvo seria uma placa de argila especial que simula a estrutura da carne humana tendo memória do impacto. Sobre ela teríamos quatro tipos de proteção com variações de qualidade e sobreposição:

- acolchoado (aketon): normalmente eram usadas de 15 à 30 camadas de algodão e ou linho e camurça. Eles eram costurados de forma irregular e sobrepostos para aumentar ainda mais sua espessura. Para o teste foram utilizadas 15 camadas de linho com uma peça superior de couro de veado;

- cota de malha: ela era uma vestimenta em forma de camisa longa produzida por anéis de metal entrelaçados. Foram usadas aqui três qualidades de cota de malha produzidos conforme os métodos da época. Aço macio de calibre 18 com anéis de diâmetro interno de 5/16; ferro de calibre 18 com anéis de diâmetro interno de 5/16 com diâmetro externo de 0,79 cm; e aço padrão de calibre 18 com anéis de diâmetro interno de 5/16, mas este último com anéis em rotação para seu entrelaçamento;

- cota de placas: vestimenta composta por pequenas placas metálicas rebitadas umas às outras, tal qual escamas, e coberta por uma fina camada de couro. Para o teste foram utilizadas peças quadradas de aço, revestidas com couro, tendo entre ele e a argila (que simula o corpo) uma peça acolchoada de 8 camadas de linho;

- armadura de placas: a armadura era composta por placas com o mínimo de junções e aberturas possíveis. Era toda de metal, normalmente aço, que variava em espessura de 1,2 à 4,57 mm. Para o teste foi utilizada uma placa de espessura mínima sobre um acolchoado de 3 camadas de linho.

Todas essas especificações podem parecer desnecessárias, mas são de fundamental importância para entendermos os resultados finais. Outro ponto que devemos atentar, antes de vermos os resultados, é que os disparos foram realizados à uma distância de 10 jardas (9,144 metros). É importante atentarmos na distância para termos uma noção exata do grau de dano em relação à distância. Se pensarmos calmamente, no senso comum apresentado em filmes, séries e imaginado a partir das descrições de livros, 10 metros é quase um disparo à queima roupa.

Vamos aos resultados. As cotas de malha se mostraram menos eficiente, permitindo uma certa penetração das flechas com um bom grau de deformação (impacto absorvido pelo corpo). As penetrações variaram entre 1,3 cm à 4,2 cm. Essas penetrações nem sempre são fatais com essas profundidades e lembrem-se que estamos falando de disparos realizados à 10 metros de distância, ou seja, quase que à queima roupa. Os disparos contra as cotas de malha tiveram uma penetração máxima ainda menor, variando de 1,3 cm à 3,8 cm, mas absorvendo muito mais da grau de deformação devido ao impacto. Já a cota de placas e a proteção de placa metálica teriam penetração no metal entre 0,3 cm e 0,5 cm e quase nunca com entrada da ponta de flecha, e claro, sem chegar à carne, pois não ultrapassavam a proteção de linho. E lembrem-se, que para esses últimos, a proteção era menor que a historicamente usada pelos cavaleiros da infantaria. Mas nesses últimos a deformidade do impacto é mais significativa.

Os resultados foram muito esclarecedores. A lógica já apresentada até aqui fica comprovada – mesmo flechas à curta distância e com impacto direto causam pouca penetração, onde o grande diferencial é a qualidade/tipo da proteção do alvo e o tipo de ponta de flecha. O certo é que mesmo em ataques diretos a perfuração era minimizada e poucas vezes acabavam chegando até a carne do alvo. Aquela ideia que tínhamos de flechas trespassando os alvos em grande quantidade nos campos de batalha até podem acontecer, mas para aquelas tropas sem a proteção adequada. Além disso, temos claro que as várias formas de pontas de flecha (como mostrado em postagem anterior) é também diretamente proporcional ao grau de penetração e, por conseqüência, grau de dano.

Veja o vídeo abaixo e perceba a enorme dificuldade de flechas lançadas de um longbow perfurarem uma placa peitoral de uma armadura de placas.


Mas, e sempre há um ‘mas’ em tudo, os arcos conseguiam sim provocar algum dano nos cavaleiros com todas aquelas proteções. Esse dano não era por perfuração, como a grande maioria acredita (e como vimos no vídeo acima e na explanação anterior), mas por impacto. Na última postagem eu já havia colocado que um disparo de um longbow inglês pode atingir um alvo com uma força equivalente à 135kg, ou seja, igual ao impacto de um disparo de um 44. A repetição de um impacto desta ordem pode danificar órgãos internos e romper ossos e artérias.

É óbvio que os arcos, e principalmente os arcos longos, tiveram sua importância militar em combates de massa. Mas a sua eficácia se dava muito mais por estratégia em seu uso do que por periculosidade. Tínhamos duas formas de usar os arcos em combate de massa. A primeira delas, e mais óbvia, seria usando-o em pontos em que seu dano fosse mais efetivo, ou seja, contra tropas de infantaria com menor proteção ou contra os próprios arqueiros adversários já que não podiam usar tanta proteção para não perderem eficácia em sua movimentação.

A segunda forma seria usando a estratégia e inteligência. Os arqueiros tinham duas noções claras: primeiro que o disparo em arco ascendente/descendente era pouco ou nada eficiente, contando muito mais com a sorte do que com a periculosidade; segundo que o impacto direto, embora não perfurasse a armadura na grande maioria das vezes, causava dano progressivo tanto na proteção quanto no cavaleiro protegido por ela. Jim Brandbury, em sua obra “Medieval Archer” (1985), tem um capítulo todo dedicado ao sucesso do uso do longbow nos combates principalmente na Inglaterra. Ele salienta que em muitos combates eles foram essenciais primeiramente no que diz respeito às tropas que tinham pouca proteção onde uma chuva de flechas poderia deixar o chão coberto de corpos se estes não estivessem devidamente protegidos. Mas a sua importância, segundo ele, também vinha do elemento “cadência” dos disparos e ‘velocidade’ das tropas adversárias, quando utilizado com inteligência e dentro de uma estratégia.

Arqueiros bem treinados, tanto na parte física quanto no manuseio do arco, conseguiam disparar um considerável número de flechas em um minuto, sendo o total mais aceito em torno de 10. Se pensarmos em um grupo de cem arqueiros (uma quantidade pouca para um grande combate na Inglaterra) teríamos, em um minuto, 1000 flechas lançadas. Temos que concordar que é uma quantidade considerável, mas que de nada adiantará se for mal utilizado ou simplesmente não causar dano. Aqui temos a aplicação da estratégia.

Os arqueiros funcionam aqui, contra cavaleiros e infantaria pesada, de duas formas. A primeira é com a alternância de disparos em arco ascendente/descendente e disparos frontais. Um bom arqueiro conseguiria calcular (isto é historicamente provado) que seus dois disparos atingissem o alvo ao mesmo tempo. Com isso o cavaleiro, mesmo com seu escudo, teria que escolher defender a flecha que vinha de cima ou a que vinha de frente. Qualquer escolha seria um risco. Como eu disse, as flechas em arco tinham menos força e eficiência e contavam, muitas vezes, com a sorte. Mas se imaginarmos que são milhares de flechas em alguns minutos vindo de cima e de frente, é de se imaginar que a sorte iria ser aplicada um bom número de vezes. Caso o cavaleiro escolhesse defender a flecha que vinha frontalmente, as flechas que desciam poderiam atingir seus pés e pernas (menos protegidos e com mais aberturas) ou mesmo ombros e cabeça. Se os cavaleiros escolhessem se proteger das flechas que vinham de cima, as flechas frontais iriam atingi-los à exaustão causando dano considerável e progressivo por impacto, até incapacitá-los ou até danificar perigosamente a armadura.

Se isso já não fosse o suficiente, esta ação da arquearia servia também para atrasar o movimento das tropas inimigas, que para se protegerem teriam que ser muito mais lentas, facilitando o posicionamento das infantarias aliadas. Aquela ideia que sempre tivemos de que os arqueiros precisam sempre procurar um posicionamento mais alto servia para que tivessem um mais amplo campo de atuação para todas essas ações.

Além disso, havia um terceiro efeito lembrando por autores como Brian Price e Steve Darley – o efeito psicológico. Por mais que pareça simples resolver esse problema de defesa com flechas vindo de cima e pela frente apenas com um adequado posicionamento dos escudos, é inegável que uma chuva de flechas provoca pavor à tropa adversária incorrendo ao erro e ao descuido. Em um combate como o da Batalha de Barnet, entre a casa de York e a casa de Lancaster, durante a Revolução das Rosas na Inglaterra, haviam pelo menos quatro mil arqueiros de cada lado, o que significa que em dez segundos tínhamos nada menos do que oito mil flechas voando de uma só vez, se contarmos apenas um dos lados. Apavorante.

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