- Realidade do
combate com arco II -
Vamos
continuar nossa jornada pelo universo da arquearia depois de um ínterim e
retornar ao tema do combate e, mais especificamente, do dano causado por
flechas. Vamos rever o que já vimos até agora. Alguns elementos quando do
disparo de flechas são diretamente ligados à intensidade do dano causado:
-
Material utilizado pelo arqueiro: tipo de arco, tipo de flecha, tipo de ponta
de flecha, tudo isso tem grande influência no dano. Já vimos em postagens
anteriores que todos esses elementos podem modificar o tipo e força do dano.
-
Tipo de proteção: conforme o tipo e quantidade de proteção do alvo há uma
quantidade de dano.
Agora
vamos ir um pouco mais à fundo em dois dados que comentamos na postagem
anterior: o ângulo do impacto e a profundidade da penetração da ponta da flecha.
Conforme
já vimos, o dano das flechas por perfuração em campos de batalha era muito
menos eficiente do que imaginavamos. Com a proteção adequada de um cavaleiro ou
de membros da infantaria, o dano era minimizado ao máximo. Se acrescentarmos
aqui o uso de escudos, temos menos dano ainda. O uso de duas das três camadas
possíveis – acolchoado de algodão, cota de malha e proteção de placas – fazia
com que a periculosidade das flechas fosse diminuindo.
Isso
significa que as flechas eram ineficientes? Claro que não, mas ao mesmo tempo
temos que relativizar sua eficiência. Muitos teste já foram feitos por
historiadores e especialistas em armas para averiguar níveis de dano e
eficiência. Um dos mais completos foi realizado por Matheus Bane, em 2006, que
gerou uma pequena publicação intitulada “English Longbow testing agaisnt
various armor circa 1400”. Ele realizou testes disparando flechas iguais, a
partir de um longbow clássico inglês de 75 libras, com quatro tipos diferentes
de pontas – broadheads dos tipos 13 e 16, needle bodkin do tipo 7 e short
bodkin do tipo 8 (veja as imagens abaixo).
O
alvo seria uma placa de argila especial que simula a estrutura da carne humana
tendo memória do impacto. Sobre ela teríamos quatro tipos de proteção com
variações de qualidade e sobreposição:
-
acolchoado (aketon): normalmente eram usadas de 15 à 30 camadas de algodão e ou
linho e camurça. Eles eram costurados de forma irregular e sobrepostos para
aumentar ainda mais sua espessura. Para o teste foram utilizadas 15 camadas de
linho com uma peça superior de couro de veado;
-
cota de malha: ela era uma vestimenta em forma de camisa longa produzida por
anéis de metal entrelaçados. Foram usadas aqui três qualidades de cota de malha
produzidos conforme os métodos da época. Aço macio de calibre 18 com anéis de
diâmetro interno de 5/16; ferro de calibre 18 com anéis de diâmetro interno de
5/16 com diâmetro externo de 0,79 cm; e aço padrão de calibre 18 com anéis de
diâmetro interno de 5/16, mas este último com anéis em rotação para seu
entrelaçamento;
-
cota de placas: vestimenta composta por pequenas placas metálicas rebitadas
umas às outras, tal qual escamas, e coberta por uma fina camada de couro. Para
o teste foram utilizadas peças quadradas de aço, revestidas com couro, tendo
entre ele e a argila (que simula o corpo) uma peça acolchoada de 8 camadas de
linho;
-
armadura de placas: a armadura era composta por placas com o mínimo de junções
e aberturas possíveis. Era toda de metal, normalmente aço, que variava em
espessura de 1,2 à 4,57 mm. Para o teste foi utilizada uma placa de espessura
mínima sobre um acolchoado de 3 camadas de linho.
Todas
essas especificações podem parecer desnecessárias, mas são de fundamental
importância para entendermos os resultados finais. Outro ponto que devemos
atentar, antes de vermos os resultados, é que os disparos foram realizados à
uma distância de 10 jardas (9,144 metros). É importante atentarmos na distância
para termos uma noção exata do grau de dano em relação à distância. Se
pensarmos calmamente, no senso comum apresentado em filmes, séries e imaginado a
partir das descrições de livros, 10 metros é quase um disparo à queima roupa.
Vamos
aos resultados. As cotas de malha se mostraram menos eficiente, permitindo uma
certa penetração das flechas com um bom grau de deformação (impacto absorvido
pelo corpo). As penetrações variaram entre 1,3 cm à 4,2 cm. Essas penetrações
nem sempre são fatais com essas profundidades e lembrem-se que estamos falando
de disparos realizados à 10 metros de distância, ou seja, quase que à queima
roupa. Os disparos contra as cotas de malha tiveram uma penetração máxima ainda
menor, variando de 1,3 cm à 3,8 cm, mas absorvendo muito mais da grau de
deformação devido ao impacto. Já a cota de placas e a proteção de placa metálica
teriam penetração no metal entre 0,3 cm e 0,5 cm e quase nunca com entrada da
ponta de flecha, e claro, sem chegar à carne, pois não ultrapassavam a proteção
de linho. E lembrem-se, que para esses últimos, a proteção era menor que a
historicamente usada pelos cavaleiros da infantaria. Mas nesses últimos a
deformidade do impacto é mais significativa.
Os
resultados foram muito esclarecedores. A lógica já apresentada até aqui fica
comprovada – mesmo flechas à curta distância e com impacto direto causam pouca
penetração, onde o grande diferencial é a qualidade/tipo da proteção do alvo e
o tipo de ponta de flecha. O certo é que mesmo em ataques diretos a perfuração
era minimizada e poucas vezes acabavam chegando até a carne do alvo. Aquela
ideia que tínhamos de flechas trespassando os alvos em grande quantidade nos
campos de batalha até podem acontecer, mas para aquelas tropas sem a proteção
adequada. Além disso, temos claro que as várias formas de pontas de flecha
(como mostrado em postagem anterior) é também diretamente proporcional ao grau
de penetração e, por conseqüência, grau de dano.
Veja
o vídeo abaixo e perceba a enorme dificuldade de flechas lançadas de um longbow
perfurarem uma placa peitoral de uma armadura de placas.
Mas,
e sempre há um ‘mas’ em tudo, os arcos conseguiam sim provocar algum dano nos
cavaleiros com todas aquelas proteções. Esse dano não era por perfuração, como
a grande maioria acredita (e como vimos no vídeo acima e na explanação anterior),
mas por impacto. Na última postagem eu já havia colocado que um disparo de um longbow
inglês pode atingir um alvo com uma força equivalente à 135kg, ou seja, igual
ao impacto de um disparo de um 44. A repetição de um impacto desta ordem pode
danificar órgãos internos e romper ossos e artérias.
É
óbvio que os arcos, e principalmente os arcos longos, tiveram sua importância
militar em combates de massa. Mas a sua eficácia se dava muito mais por
estratégia em seu uso do que por periculosidade. Tínhamos duas formas de usar
os arcos em combate de massa. A primeira delas, e mais óbvia, seria usando-o em
pontos em que seu dano fosse mais efetivo, ou seja, contra tropas de infantaria
com menor proteção ou contra os próprios arqueiros adversários já que não
podiam usar tanta proteção para não perderem eficácia em sua movimentação.
A
segunda forma seria usando a estratégia e inteligência. Os arqueiros tinham
duas noções claras: primeiro que o disparo em arco ascendente/descendente era
pouco ou nada eficiente, contando muito mais com a sorte do que com a
periculosidade; segundo que o impacto direto, embora não perfurasse a armadura
na grande maioria das vezes, causava dano progressivo tanto na proteção quanto
no cavaleiro protegido por ela. Jim Brandbury, em sua obra “Medieval Archer”
(1985), tem um capítulo todo dedicado ao sucesso do uso do longbow nos combates
principalmente na Inglaterra. Ele salienta que em muitos combates eles foram
essenciais primeiramente no que diz respeito às tropas que tinham pouca
proteção onde uma chuva de flechas poderia deixar o chão coberto de corpos se
estes não estivessem devidamente protegidos. Mas a sua importância, segundo
ele, também vinha do elemento “cadência” dos disparos e ‘velocidade’ das tropas
adversárias, quando utilizado com inteligência e dentro de uma estratégia.
Arqueiros
bem treinados, tanto na parte física quanto no manuseio do arco, conseguiam disparar
um considerável número de flechas em um minuto, sendo o total mais aceito em
torno de 10. Se pensarmos em um grupo de cem arqueiros (uma quantidade pouca
para um grande combate na Inglaterra) teríamos, em um minuto, 1000 flechas
lançadas. Temos que concordar que é uma quantidade considerável, mas que de
nada adiantará se for mal utilizado ou simplesmente não causar dano. Aqui temos
a aplicação da estratégia.
Os
arqueiros funcionam aqui, contra cavaleiros e infantaria pesada, de duas formas.
A primeira é com a alternância de disparos em arco ascendente/descendente e
disparos frontais. Um bom arqueiro conseguiria calcular (isto é historicamente
provado) que seus dois disparos atingissem o alvo ao mesmo tempo. Com isso o
cavaleiro, mesmo com seu escudo, teria que escolher defender a flecha que vinha
de cima ou a que vinha de frente. Qualquer escolha seria um risco. Como eu
disse, as flechas em arco tinham menos força e eficiência e contavam, muitas
vezes, com a sorte. Mas se imaginarmos que são milhares de flechas em alguns
minutos vindo de cima e de frente, é de se imaginar que a sorte iria ser
aplicada um bom número de vezes. Caso o cavaleiro escolhesse defender a flecha
que vinha frontalmente, as flechas que desciam poderiam atingir seus pés e pernas
(menos protegidos e com mais aberturas) ou mesmo ombros e cabeça. Se os
cavaleiros escolhessem se proteger das flechas que vinham de cima, as flechas
frontais iriam atingi-los à exaustão causando dano considerável e progressivo
por impacto, até incapacitá-los ou até danificar perigosamente a armadura.
Se
isso já não fosse o suficiente, esta ação da arquearia servia também para atrasar
o movimento das tropas inimigas, que para se protegerem teriam que ser muito
mais lentas, facilitando o posicionamento das infantarias aliadas. Aquela ideia
que sempre tivemos de que os arqueiros precisam sempre procurar um
posicionamento mais alto servia para que tivessem um mais amplo campo de
atuação para todas essas ações.
Além disso, havia um
terceiro efeito lembrando por autores como Brian Price e Steve Darley – o efeito
psicológico. Por mais que pareça simples resolver esse problema de defesa com
flechas vindo de cima e pela frente apenas com um adequado posicionamento dos
escudos, é inegável que uma chuva de flechas provoca pavor à tropa adversária
incorrendo ao erro e ao descuido. Em um combate como o da Batalha de Barnet, entre
a casa de York e a casa de Lancaster, durante a Revolução das Rosas na
Inglaterra, haviam pelo menos quatro mil arqueiros de cada lado, o que
significa que em dez segundos tínhamos nada menos do que oito mil flechas
voando de uma só vez, se contarmos apenas um dos lados. Apavorante.
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